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O PÚBLICO, LISBOA, FEVEREIRO DE 2004 | |
1. A Quaresma ritual começou na quarta-feira passada com a imposição das Cinzas: em pó acabarão as vaidades que nos fazem esquecer a transcendência do ser humano expressa nos paradoxos do seu corpo. Segundo o tema da eucaristia deste domingo, a Quaresma é o tempo do confronto com as seduções "diabólicas" que nos prometem tudo em troca da rendição à dominação económica, política e religiosa, faces do poder idolatrado. Diabólicas porque, segundo a etimologia da palavra, separam-nos da vida como dom, como serviço dos mais débeis da sociedade e do empenhamento na "globalização da solidariedade". Para que isto não fique em palavras, o Papa centrou a sua mensagem para esta Quaresma no acolhimento, na defesa, na protecção e no apoio às crianças, especialmente às mais abandonadas e ofendidas. Em alguns quadrantes não faltou quem aproveitasse para atirar algumas farpas a João Paulo II. Ele não teria qualquer autoridade para falar da situação terrível de milhões de crianças no mundo actual. Dizem que as suas atitudes em relação ao uso do preservativo em situações de risco são simplesmente escandalosas e a demora em reagir às acusações contra padres e bispos envolvidos em crimes de pedofilia exige que seja ele o primeiro a penitenciar-se antes de tentar dar lições aos outros. Um católico sabe que o Papa não está isento da necessidade de correcção fraterna e não pode ser indiferente às críticas expressas por correntes de opinião que lhe são adversas. S. Paulo corrigiu frontalmente S. Pedro e, ao longo da história, a Igreja reformou várias vezes o seu pensamento e as suas atitudes tendo em conta as questões em debate na sociedade. O Vaticano II foi interpretado pelo Papa João XXIII como um urgente necessidade de "aggiornamento" da Igreja. Dito isto, parece-me excessivo querer reduzir o Papa ao silêncio precisamente quando a devastadora exploração capitalista da pornografia se tornou uma indústria avassaladora e largamente consumida pelas crianças... 2. Na sua modesta mensagem quaresmal, João Paulo II não é nem polémico nem negativista. Destaca, em primeiro lugar, alguns sinais admiráveis de generosidade: os pais que não hesitam em tomar a seu cuidado uma família numerosa; as mães e os pais que, no topo das suas prioridades, colocam não a busca do sucesso profissional e da carreira, mas a preocupação por transmitir aos filhos os valores humanos e religiosos que verdadeiramente dão sentido à existência; as pessoas que cuidam da formação da infância em dificuldades e aliviam os sofrimentos das crianças e dos seus familiares causados pelos conflitos, pela violência, pela falta de alimento e de água, pela emigração forçada e por tantas formas de injustiça que percorrem o mundo. Mas, também há muitos que se fecham no seu egoísmo. Existem menores profundamente feridos pela violência dos adultos: abusos sexuais, aviamento à prostituição, envolvimento na venda e uso da droga, crianças obrigadas a trabalhar ou alistadas e armadas para combater; inocentes marcados para sempre pela desagregação familiar; miúdos desaparecidos no ignóbil tráfico de órgãos e pessoas. E que dizer da tragédia da sida, com consequências devastadoras em África? Em finais de 2002, a África tinha apenas 10 por cento da população mundial, mas tinha 70 por cento dos infectados. Em vários países deste continente, existem aldeias formadas apenas por crianças órfãs da sida e pelos avós! 3. Há situações que reúnem todas as tragédias (1). A Coligação Internacional contra o Emprego de Crianças-Soldados tem vindo a revelar a dimensão assustadora da militarização. Pelo menos em 40 países, umas 300 mil crianças combatem armadas, e noutros 90 países, são 500 mil que estão alistadas. A evolução tecnológica possibilitou o fabrico e o manuseamento fácil de Kalashnikov e de outras armas ligeiras. Custam em alguns lugares menos do que uma ovelha, e noutros, como no Uganda, menos do que um frango. Calcula-se que existem à disposição cerca de 70 milhões destas armas ligeiras e são conhecidas outras marcas. No Uganda, os efectivos do cruel Exército de Resistência do Senhor - quer substituir o actual regime por outro baseado nos Dez Mandamentos! - são constituídos, na sua maioria, por crianças raptadas e obrigadas a combater. A sida mata milhares de crianças na guerra, porque ficando órfãs dos pais vitimados por essa doença, procuram refúgio, protecção e alimento entre os soldados. Muitas vezes em troca da prestação de serviços, inclusive sexuais. A pobreza de muitas crianças é o caminho da guerra. Foi apurado que, em Angola, 66 por cento das crianças viram assassinar e 67 por cento viram torturar e matar. Segundo Jesus Cristo, "aquele que não receber o Reino de Deus como uma criança não entrará nele". Hoje, em certos países e situações, as crianças, para sobreviverem, são obrigadas a ser como os adultos no reino do crime organizado. P.S. - Há dias, em Nampula, a freira que denunciou o rapto de crianças e o tráfico de órgãos foi morta. (1) Cf. Luciano Bertozzi, "I Bambini Soldato", EMI, Bolonha; Isaías Pereira, "Além-mar", Fevereiro, 2004 |
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