Por Causa
da Alegria

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ..........................................Público, Lisboa, 12.12.2004


A esperança, como diz Charles Péguy, espanta o próprio Deus. É a virtude do quotidiano e dos tempos impossíveis. Mesmo no mais profundo abismo, pode-se gritar.

A selecção dos textos do profeta Isaías para as celebrações deste tempo de Advento tem riscos. Serão palavras do desejo que projecta ilusões, que alimenta miragens como se fossem promessas de Deus ou nascem da certeza de que não estamos sós num mundo vazio de sentido?

Se a Realidade última e primeira não for apenas o ser humano perdido na sua finitude, os pesadelos podem transformar-se em antecipações da alegria. O futuro não tem que ser a eterna reprodução do mesmo:

"Alegrem-se o deserto e o descampado, rejubile e floresça a terra árida, cubra-se de flores como o narciso, exulte com brados de alegria. Ser-lhe-á dada a glória do Líbano, o esplender do Carmelo e do Sáron. Verão a glória do Senhor, o esplender do nosso Deus. Fortalecei as mãos fatigadas e robustecei os joelhos vacilantes. Dizei aos corações perturbados: Tende coragem, não temais. Aí está o vosso Deus, vem para fazer justiça e dar recompensa. Ele próprio vem salvar-vos. Então se abrirão os olhos dos cegos e os ouvidos dos surdos. O coxo saltará como um veado e a língua do mudo cantará de alegria. Voltarão os que o Senhor libertar, hão-de chegar a Sião com brados de alegria, com eterna felicidade a iluminar-lhes o rosto. Reinarão o prazer e o contentamento. Acabarão a dor e os gemidos" (Is. 35, 1-6; 10).

Este júbilo antecipado é a construção da linguagem da resistência animada por Alguém que não se rende nem à morte nem ao exílio. Mas Deus e o seu reino nunca serão como o imaginamos ou desejamos. A megalomania do desejo é sempre muito curta, mesmo quando parece desmedida.

2. Outro texto seleccionado para hoje vem do Novo Testamento, do Evangelho de S. Mateus, o autor que vai orientar a liturgia deste novo ano. A passagem tem paralelo em S. Lucas. É a interpretação da grande ruptura na História das religiões e do nascimento do "movimento de Jesus" que ainda hoje temos muita dificuldade em perceber na sua espantosa originalidade.

O texto precisa de ser situado. Jesus fez parte do grupo do severíssimo profeta João Baptista e recebeu das mãos deste o baptismo dos penitentes.

Os Evangelhos contam que depois de uma experiência mística, Jesus abandonou as convicções teológicas, os rituais e o estilo de vida de João Baptista. E constituiu um novo e escandaloso movimento para a religião oficial como para o próprio movimento baptista.

João, entretanto, foi preso. Chegavam à cadeia notícias intrigantes acerca do rumo que Jesus tinha dado à sua vida. Eis o texto:

"João Baptista ouviu falar, na prisão, das obras de Cristo e mandou-lhe dizer pelos discípulos: És Tu aquele que há-de vir, ou devemos esperar outro?

"Jesus respondeu-lhe: Ide contar a João o que vedes e ouvis: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a boa nova e anunciada aos pobres. E bem-aventurado aquele que não encontrar em mim motivo de escândalo.

"Quando os mensageiros partiram, Jesus começou a falar de João às multidões: Que fostes então ver ao deserto? Uma cana agitada pelo vento? Que fostes ver? Um homem vestido de roupas delicadas? Aqueles que usam roupas delicadas encontram-se nos palácios dos reis. Que fostes ver então? Um profeta? Sim - Eu vo-lo digo - e mais do que um profeta. É dele que está escrito: Vou enviar à tua frente o meu mensageiro, para te preparar um caminho.

"Em verdade vos digo: entre os filhos de mulher, não apareceu ninguém maior do que João Baptista. Mas o menor no reino dos Céus é maior do que ele" (Mt. 11, 2-11).

A liturgia dominical parou aqui a transcrição. Mas o texto continua para dizer que João - quer os ouvintes acreditem ou não - era o último sinal, o verdadeiro profeta Elias que estava para vir. Lamenta que aquela geração continue a brincar às religiões, como as crianças brincam, nas praças, aos enterros e aos casamentos: "Veio João Baptista, que não come nem bebe, e dizem dele: está possesso! Veio o Filho do Homem, que come e bebe, e dizem: aí está um glutão e bebedor de vinho, amigo de cobradores de impostos e pecadores."

As religiões perdem-se em credos, normas, organizações, tabus, rituais, sacrifícios, argumentações e reformas que terminam sempre em mais do mesmo: regras de hipocrisia para os poderosos e uma carga maior para os que já vivem oprimidos.

Jesus comove-se porque verifica que "os sem vez e sem voz", como hoje se diz, entenderam a revelação de que Deus não faz parte desse jogo. Na actuação de Jesus passa um amor desconhecido que transfigura os que se julgam perdidos de Deus e da vida.

Encerrou aquele espantoso dia com um apelo: "Vinde a mim, todos os que estais cansados e oprimidos, que eu vos aliviarei. Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração e alcançareis descanso para o vosso espírito. O meu jugo é suave e o meu fardo é leve."

Andaremos esquecidos de que o Novo Testamento foi escrito por causa da nossa alegria?