ALEGRAI-VOS!
OS VOSSOS NOMES
ESTÃO NOS CÉUS

 
 
BENTO DOMINGUES, O.P. .............................................Público, Lisboa, 4.07.2004

1. No domingo passado, participei na ordenação de alguns diáconos e presbíteros ("padres") no majestoso Mosteiro dos Jerónimos, completamente cheio. Eu teria preferido que as profundas exigências da celebração do sagrado cristão não fossem confundidas com a encenação do aborrecimento. Mas, adiante.

Na ordenação dos diáconos, o cardeal-patriarca, com as palavras belas e ritmadas do ritual, apontou aos servidores do altar um programa excelente para todos os cristãos: "Recebe o Evangelho de Cristo. Tens a missão de o proclamar. Crê o que lês, ensina o que crês e vive o que ensinas."

Na prolixa oração consacratória dos presbíteros - sem os quais a Igreja Católica Romana vive mal -, o bispo da diocese de Lisboa inscreveu-os na missão de levar o Evangelho "até aos confins do mundo" e de celebrar, em união com ele, os sacramentos do baptismo, da eucaristia, da reconciliação e da santa unção. Ou segundo as palavras dirigidas a Deus: "Para que o povo que vos pertence renasça pelo banho da regeneração e se alimente no vosso altar, os pecadores se reconciliem e os enfermos encontrem alívio. Unam-se a nós, Senhor, para invocar a vossa misericórdia pelo povo a eles confiado e em favor do mundo inteiro. Assim todas as nações, congregadas em Cristo, se hão-de converter num só povo que vos pertence, e consumar-se no vosso Reino."

2. A amplitude e as exigências de todos estes encargos estruturais contrastam com o notório envelhecimento do clero, o escasso número de novas ordenações presbiterais e os obstáculos postos pelo Vaticano a outras formas da sua configuração. Mas como concretizar estes encargos missionários impostos pelo ritual da ordenação, se pensarmos nos desafios levantados a toda a Igreja pela evangelização da China e da Índia que são um terço do mundo em acelerado crescimento económico? Como evangelizar uma Europa sem alma, feita de arranjos superficiais, esquecida da sua "herança cristã" e cada vez mais povoada por religiões não cristãs? Já terá a Igreja desesperado de evangelizar o vasto mundo muçulmano?

Será que a Igreja Católica poderá participar nesse grande desígnio, se nem sequer dispõe de efectivos suficientes para responder às responsabilidades contraídas com os seus fiéis actuais?

Algumas dessas questões são pertinentes, outras estão mal formuladas. Esquecem e misturam muita coisa que era necessário recordar e distinguir. Seria, porém, uma traição inacreditável da Igreja renunciar à significação universal da pessoa de Cristo e do seu Evangelho. E seria igualmente uma traição que este universalismo tivesse qualquer sentido de dominação, de atentado à liberdade religiosa, de desqualificação das outras religiões, e de recusa do diálogo inter-religioso.
O processo movido contra muitos aspectos da história das missões das igrejas cristãs deve fazer parte da conversão da Igreja santa e pecadora.

3. Esse processo não deve, no entanto, levar os cristãos a esquecer o essencial: a Igreja nasce continuamente da missão evangelizadora e só pode renovar-se na revisão permanente dos seus processos. Uma diocese, uma paróquia, uma congregação religiosa que viva só para a manutenção do seu estado actual está a suicidar-se. Em cada momento histórico, o cristianismo deve saber que está só a dar os primeiros passos. Segundo os textos do Novo Testamento, o horizonte do projecto de Jesus implica uma luta contínua por um mundo sem excluídos. A pessoa de Jesus Cristo e o seu corpo místico e o seu corpo místicos são já primícias desse mundo transformado, presente e actuante num universo roído por mecanismos económicos, sociais e culturais de exclusão.

Na adesão a Cristo ressuscitado, Paulo de Tarso descobriu, há dois mil anos, essa presença e esse horizonte como tarefa histórica da sua intervenção:

"Não há judeu nem grego, não há escravo nem livre, não há homem nem mulher, todos vós sois um só em Cristo." A Igreja ou é interétnica até ao coração, ou não é a Igreja de Cristo (Gal. 3, 26-29).


R. Calimani sustenta: "Naquele tempo só um hebreu podia interessar-se tão intensamente por Cristo Jesus, só um grego podia difundir essa ideia de um modo tão fecundo, só um romano das longínquas províncias podia compreender o sentido universal, transformando a esperança judaica em religião de toda a humanidade. Só Saulo, chamado Paulo, hebreu, grego, romano, podia tentar um empreendimento tão inquietante e grandioso: fazer da ética hebraica património de grande parte da humanidade."

Mas a interrogação fundamental é a seguinte: em que consiste esta ética universal proposta por S. Paulo? Pode ser resumida nesta proposta - tornar-se livre para estar ao "serviço uns dos outros, porque toda a Lei se cumpre plenamente nesta única palavra: ama o teu próximo como a ti mesmo" (Ga1.5).

O fundamento transcendente desta ética universal foi revelado pelo próprio Cristo ao avaliar a acção missionária dos seus discípulos enviados "como cordeiros para o meio de lobos", com uma mensagem de paz para a cura do mundo: "Alegrai-vos porque os vossos nomes estão inscritos nos céus." É esta a espantosa revelação que os cristãos recebem hoje na eucaristia. Para todos. Continuamos esquecidos de que todos os seres humanos têm o seu nome gravado no coração de Deus. Falta-nos gravar no nosso coração o nome do nosso próximo.