A Igreja e o 25 de Abril

 

BENTO DOMINGUES, O.P. ........................O PÚBLICO, Lisboa, 25 de Abril de 2004
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1. Para viver é preciso esquecer, dizia Nietzsche. E dizia mal. A cultura da memória - a não confundir com culto do passado - é filha da informação e do discernimento e mãe da lucidez. Como escreveu Mário Soares na revista "Visão" do passado dia 15: "Esquecer o 25 de Abril, como se fosse uma febre que passou, representa um grande erro e - atenção - uma grave imprudência." E acrescenta: "A Igreja é um dos raros poderes fácticos que não o esqueceu e aprendeu."

Suponho que ninguém esperava que no dia 25 de Abril de 1974 os bispos portugueses, reunidos em Fátima, cantassem um "Te Deum" de júbilo pelo derrube da ditadura ou que viessem para a rua, de cravos ao peito, celebrar a liberdade e gritar o seu apoio ao MFA. Em vez da grande solenidade, do folclore ou do luto, preferiram a reflexão.

D. José Policarpo, cardeal-patriarca de Lisboa, falando em Fátima no passado dia 19, na abertura da assembleia plenária da Conferência Episcopal Portuguesa (CEP), regozijou-se com a forma como os bispos, há trinta anos, reagiram em conjunto à surpresa dos acontecimentos: "Estamos-lhes gratos por esse testemunho de serenidade, confiança e discernimento pastoral. Perceberam a novidade de um futuro novo e começaram a definir o lugar da Igreja na nova ordem que se anunciava."

À distância de trinta anos, pode dizer-se que já havia no episcopado alguns receptores preparados para acolher aquela surpresa. O período da "Igreja triunfante" - que Marcelo Caetano evoca em "Minhas Memórias de Salazar" e durante o qual o cardeal Cerejeira "era uma espécie de homólogo do chefe do Estado" - já tinha chegado ao fim em 1971. E não teria nova edição. Com D. António Ferreira Gomes já bem seguro no Porto, o Vaticano soube antecipar uma transição evolutiva do episcopado, começando pelo próprio patriarcado de Lisboa.

2. Essa operação não podia impedir que D. António Ribeiro herdasse as consequências da extrema turbulência em que estava mergulhada a diocese de Lisboa, consumando rupturas iniciadas nos finais dos anos 50 e que uma recepção conservadora do Vaticano II, no complexo contexto português dos anos 60 - a braços com três frentes de guerra -, era incapaz de gerir. Mas a mudança significava que não iriam ser atribuídas directamente ao novo patriarca as acusações acumuladas contra o cardeal Cerejeira. D. António Ribeiro soube marcar bem - não só por razões de temperamento, mas por convicções doutrinais e pastorais - que não podia nem devia ser uma nova versão do seu antecessor. E não foi. Quando, em 1973, recebeu em Roma, com toda a naturalidade, o dr. Mário Soares - um exilado, grande figura da oposição ao regime e que viria a ser um dos obreiros mais persistentes na liquidação da "questão religiosa" que envenenara a República de 1910 -, o novo patriarca de Lisboa estava a marcar a sua independência perante o poder político.

Numa luminosa entrevista ao "Diário de Notícias" (10/5/96) sobre as concepções que presidiam a todos os sectores da sua actuação pastoral, não podia ter sido mais claro: "Com o poder político, a minha relação procura ser respeitosa e isenta de subserviências. Posso garantir que nunca lhe pedi favores. Nem antes, nem depois do 25 de Abril. Se há dificuldades ou obstáculos, considero-os coisas normais da missão que exerço."

3. E agora? D. José Policarpo responde: "Trinta anos depois, compete-nos a nós continuar esse discernimento sobre a especificidade da Igreja em Portugal democrático e a intuir a sua contribuição para a construção de uma sociedade mais justa e fraterna. Digo-o sem hesitações: este aniversário, a Igreja também o celebra, e saúda todos aqueles que, neste período de tempo, lutaram com generosidade e ideal para ajudarem a construir o quadro institucional que garanta o progresso, a harmonia e a paz." Depois de entrar levemente nas linhas gerais do debate actual em torno do 25 de Abril, realça o diferenciado papel, passado e actual, dos bispos e leigos em relação à intervenção política da Igreja.

Mas para a "cultura da memória" acerca do papel da Igreja durante as décadas de 60 e 70 do séc. XX não basta destacar a coerência das posições da Conferência Episcopal Portuguesa desde o 25 de Abril. Para usar a expressão do poeta Ruy Belo e que serviu de título a um sugestivo opúsculo de João Bénard da Costa (1), os bispos têm o dever de procurar entrar em diálogo com "os vencidos do catolicismo".

Essa metáfora evoca uma realidade muito vasta, complexa e semeada de equívocos. Os pastores bons deviam lembrar-se dessas "ovelhas perdidas" dos seus olhares e cuidados antes e depois do 25 de Abril que, entretanto, já tiveram filhos e netos.

Estou a reler uma tese notável de Paula Borges (2) que desejo ver publicada o quanto antes. Para além do seu alcance académico, permite redescobrir e refazer as imagens de algumas formas de catolicismo português que deviam dar muito que pensar a quem sonha com uma evangelização que não se esqueça das virtualidades da Revolução de Abril.

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(1) Cf. "Nós, os vencidos do catolicismo", Ed. Tenacitas, Coimbra, 203.
(2) Cf. "A Igreja e o 25 de Abril - 'O caso Rádio Renascença' (1974-1975), Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, UNL, 2003.