1. Carolina Michaëlis de
Vasconcelos (1851-1925) diz que, no período medieval, “a literatura
portuguesa, em matéria de traduções bíblicas, é de uma pobreza
desesperada”. Esta afirmação tem sido repetida, mas nunca desmentida.
A primeira tradução da Bíblia, a partir de hebraico e do grego, foi
realizada por João Ferreira d’Almeida que tinha passado, aos catorze
anos, do catolicismo ao protestantismo (Igreja Reformada Holandesa). A
sua tradução foi publicada e corrigida entre os séculos XVII e XVIII.
José Nunes Carreira sintetizou a história da
Exegese Bíblica em Portugal[i]
nos seus momentos altos e baixos.
Frei Francolino Gonçalves foi um dos seus
momentos mais importantes. Fez parte dos grandes investigadores da
famosa Escola Bíblica de Jerusalém (EBJ), a responsável, desde
os finais do séc. XIX, pelo estudo científico da Bíblia, no campo
católico. Para dar a conhecer as dificuldades desse grande salto,
aconselhou que fosse editada, em Portugal, uma obra incontornável do
seu fundador, Marie-Joseph Lagrange, O.P.[ii]
Frei Francolino morreu, em Jerusalém, no dia
15 de Junho. Nasceu em Curujas, Macedo de Cavaleiros, a 28 de Março de
1943. Professou na Ordem Dominicana em 1960.
Nunca procurou fazer carreira. Seguiu o
caminho de preparação para ser uma testemunha lúcida do Evangelho.
Depois dos estudos curriculares, em filosofia e teologia, em Portugal
e no Canadá, foi enviado para a EBJ. Aí e durante 43 anos,
trabalhou como investigador e professor. Considerou-se, até ao fim,
como um estudante. Foi solicitado para fazer cursos e conferências em
Paris, Berlim, Salamanca, Roma, Portugal, Tóquio, Quebec, Cusco, Lima,
Santiago do Chile, México, mas as suas responsabilidades de
investigador, de preparação de novos investigadores e de publicações
científicas estiveram sempre ligadas à EBJ. Era a sua casa, de
vida e trabalho, num contexto de atentados permanentes contra os
direitos humanos.
Reconhecido nos meios da investigação bíblica
como uma das suas grandes figuras, de alcance internacional. Ao ser
convidado para Membro da Comissão Bíblica Pontifícia, e reconduzido
pelo Papa Francisco, alguns meios de comunicação católica portuguesa
acordaram para uma realidade que ignoravam.
Em Portugal, foi premiado, em 2011, pela
Academia Pedro Hispano, é membro da Academia Portuguesa de História,
do conselho científico de CADMO, da Revista Lusófona Ciências das
Religiões, do ISTA e da Associação Bíblica Portuguesa.
Quem desejar conhecer a sua bibliografia pode
recorrer ao site Bibliothèque St Étienne de Jérusalem - École
Biblique et Archéologique Française[iii].
Em Portugal foi, sobretudo, nos Cadernos ISTA que publicou
alguns dos seus estudos mais significativos[iv].
Espero que, em breve, sejam publicados em
livros. Todas as vezes que tentei que isso acontecesse, dizia-me
sempre que gostaria ainda de rever o conjunto, como obra unificada.
A sua insatisfação nada pôde contra a morte.
2. Frei José Nunes, O.P.
na celebração da Eucaristia de evocação de Frei Francolino, referiu-se
a um dos seus estudos decisivos e inovadores sobre as
representações de Deus nas duas religiões iaveístas do Antigo
Testamento (AT)[v],
isto é, a existência de dois iaveísmos diferentes. Esse estudo é muito
extenso e muito analítico.
A eleição de Israel, a sua libertação do
Egipto e a aliança que Iavé fez com ele são os artigos fundamentais da
fé iaveísta.
Esta era a opinião comum que fazia das
relações entre Iavé e Israel a matriz do iaveísmo. Tornou-se, para
vários autores, uma posição insustentável. Era contestada a opinião
corrente liderada por uma grande figura da exegese, von Rad. A própria
constituição dogmática Dei Verbum, do Vaticano II, deve muito à
teologia desse teólogo luterano. Mas, na sequência de outros
investigadores, Frei Francolino mostrou, pelo contrário, que o AT
contém duas representações diferentes de Iavé. Segundo uma, ele é o
Deus criador que abençoa todos os seres vivos; segundo a outra, ele é
o Deus que está ligado a Israel, o seu povo, a quem protege e salva.
Segundo o Fr. Francolino, os exegetas não
prestaram a atenção que mereciam estas vozes discordantes. A
esmagadora maioria parece nem as ter ouvido. Por isso, ficaram sem
eco, não tendo chegado ao conhecimento dos teólogos, dos pastores nem,
por maioria de razão, do público cristão. “As minhas pesquisas, nesta
matéria, confirmaram, essencialmente, os resultados dos estudos
que referi e, além disso, levaram-me a propor uma hipótese de
interpretação do conjunto dos fenómenos religiosos do AT, que é nova.
A meu ver, o AT documenta a existência de dois sistemas iaveístas
diferentes: um fundamenta-se no mito da criação e o outro, na história
da relação de Iavé com Israel. Simplificando, poderia chamar-se
iaveísmo cósmico ao primeiro e iaveísmo histórico ao segundo.
Contrariamente à opinião comum, a fé na criação não é um elemento
recente, mas constitui a vaga de fundo do universo religioso do AT”.
3. Qual é a importância
da descoberta de dois iaveísmos? Julgo-a de grande alcance para todos
os leitores do AT e considero-a uma das raízes do universalismo
cristão. É a diferença entre um Deus universalista, Deus de todos os
seres humanos e da criação, casa comum de todos, e a representação de
um Deus nacionalista que confunde o Mundo com os interesses de um
povo, capaz não só de o defender, mas de se tornar inimigo dos outros
povos, podendo até mandá-los exterminar.
É esta distinção que nos pode ajudar a
compreender o sentido e o absurdo da violência de muitas páginas da
biblioteca do povo de Israel. Colocou-se na boca de Deus os interesses
de um povo contra os outros povos. Não pode ter sido o Deus do
Universo a escrever essas blasfémias.
Quando tropeçamos nessas passagens, devemos
perguntar: que causas e interesses defendem?
in Público,
25.06.2017