1. Nestas crónicas,
recusei-me sempre a responder à pergunta: que vem o Papa fazer a
Fátima? Que vinha canonizar os “beatos” Jacinta e Francisco estava
assente. Para isso não precisava desta custosa deslocação. A
declaração de reconhecimento da santidade destes pastorinhos podia ser
feita em Roma. Por isso, julguei que era melhor esperar para ver. O
Papa veio mas, antes, tinha realizado outra peregrinação bem mais
arriscada e de alcance imediato: o encontro com cristãos e muçulmanos
no Egipto.
J. Mario Bergoglio, antes de vir a Fátima,
tinha publicado uma carta apostólica que transfere as competências
sobre os Santuários para o Pontifício Conselho para a Promoção da Nova
Evangelização. Vislumbrava nesse documento, inspirador e normativo,
que viria realizar o que mais tem faltado em Fátima: tornar-se um
centro propulsor de saída para o mundo e não apenas de um altar de
incenso.
Como já referi, irritavam-me, entretanto, as
notícias colhidas ou veiculadas pelo Santuário sobre os cuidados com a
figura do Papa, a sua indumentária para celebrar, o cálice de ouro, a
pala para o resguardar do sol e outras futilidades do género. Pareciam
manifestar o propósito de neutralizar, na Cova da Iria, o que
Bergoglio trouxe de novo à orientação da Igreja católica: uma Igreja
de saída para todas as periferias, com gosto da alegria do Evangelho,
de uma evangelização nova, libertadora, descrucificante.
Um grande desejo pode tornar-se numa grande
decepção: ver o Papa chegar a Fátima e nem ele cumprir o que propôs
para os santuários, seria o enterro da sua própria Carta Pastoral.
Entretanto, foi divulgada a oração que iria
fazer no dia 12 de Maio, na Capelinha das Aparições. É uma celebração
transfiguradora da Salve Rainha tão antiga e que, de repente, ficou
uma nova respiração do céu e da terra. As invocações gastas
encontraram a linguagem poética da fé incarnada na alegria do
Evangelho. Atrevo-me a destacar: Ó doce virgem Maria,
Rainha do Rosário de Fátima! Faz-nos seguir o exemplo dos
Bem-aventurados Francisco e Jacinta e de todos os que se entregam à
mensagem do Evangelho. Percorreremos, assim, todas as rotas, seremos
peregrinos de todos os caminhos, derrubaremos todos os muros e
venceremos todas as fronteiras, saindo em direcção a todas as
periferias, revelando, aí, a justiça e a paz de Deus. Seremos,
na alegria do Evangelho, a Igreja vestida de branco, da alvura
branqueada no sangue do Cordeiro derramado ainda em todas as guerras
que destroem o mundo em que vivemos. E assim seremos, como Tu, imagem
da coluna luminosa que alumia os caminhos do mundo, a todos mostrando
que Deus existe, que Deus está, que Deus habita no meio do seu
povo, ontem, hoje e por toda a eternidade.
O horizonte do primeiro documento,
verdadeiramente programático do Papa Francisco, (A Alegria do
Evangelho), passou para a sua Salve Rainha, a oração feita
missão para todas as periferias. Tinha de dizer: esta peregrinação é
essencial. Como poderia Bergoglio esquecer o seu passado de
transformação da religiosidade popular – puramente regional – perante
um santuário que reúne multidões de muitos países?
2. O Papa veio, rezou na
capela de Nossa Senhora do Ar. Repetirá, durante a sua peregrinação,
que se reza em Fátima como em qualquer lugar. Seguiu para a Cova da
Iria. A quem desejasse acompanhar a deslocação e a sua chegada ao
santuário, os quatro canais de televisão exibiam uma verborreia
contínua e irritante que não deixava espaço mental para mais nada. Não
se prepararam para saber dosear o tempo da informação e do comentário
com o silêncio indispensável. O silêncio imposto para a oração do
Papa, na capelinha, mostrou que tudo podia ser diferente.
Um momento chave de todas as peregrinações de
Fátima é o mar de luz expresso na procissão das velas. Desta vez,
havia uma mensagem especial. O Papa enfrentou a sua tarefa de
transformar as atitudes dos peregrinos: Peregrinos com
Maria… Qual Maria? Uma «Mestra de vida espiritual», a primeira que
seguiu Cristo pelo caminho «estreito» da cruz dando-nos o exemplo, ou
então uma Senhora «inatingível» e, consequentemente, inimitável? A
«Bendita por ter acreditado[i]»
sempre e em todas as circunstâncias nas palavras divinas, ou então uma
«Santinha» a quem se recorre para obter favores a baixo preço? A
Virgem Maria do Evangelho venerada pela Igreja orante, ou uma esboçada
por sensibilidades subjectivas que A vêem segurando o braço justiceiro
de Deus pronto a castigar: uma Maria melhor do que Cristo, visto como
Juiz impiedoso; mais misericordiosa que o Cordeiro imolado por nós?
Grande injustiça fazemos a Deus e à sua
graça, quando se afirma em primeiro lugar que os pecados são punidos
pelo seu julgamento, sem antepor – como mostra o Evangelho – que são
perdoados pela sua misericórdia! (…) «Sempre que
olhamos para Maria, voltamos a acreditar na força revolucionária da
ternura e do carinho. Nela vemos que a humildade e a ternura não são
virtudes dos fracos mas dos fortes, que não precisam de maltratar os
outros para se sentirem importantes (…). Esta dinâmica de justiça e de
ternura, de contemplação e de caminho ao encontro dos outros é aquilo
que faz d’Ela um modelo eclesial para a evangelização[ii]».
Possamos, com Maria, ser sinal e sacramento da misericórdia de Deus
que perdoa sempre, perdoa tudo.
3. Deus criou-nos como
uma esperança para os outros, uma esperança real e realizável segundo
o estado de vida de cada um, disse o Papa na homilia de Sábado.
Temos Mãe na Mãe de Jesus. Não veio aqui,
para que A víssemos. Para isso teremos a eternidade inteira. Dos seus
braços virá a esperança e a paz que necessitamos e as suplico para
todos os meus irmãos no Baptismo e em humanidade, de modo especial,
para os doentes e pessoas com deficiência, os presos e desempregados,
os pobres e abandonados.
O futuro de Fátima depende do seu
empenhamento em desencadear uma verdadeira mobilização geral contra
esta indiferença que nos gela o coração e agrava a miopia do olhar. A
vida só pode sobreviver graças à generosidade de outra vida. Sejamos,
no mundo, sentinelas da madrugada que sabem contemplar o verdadeiro
rosto de Jesus Salvador e descobrir novamente o rosto jovem e belo da
Igreja, que brilha quando é missionária, acolhedora, livre, fiel,
pobre de meios e rica no amor[iii].
Bem-haja, Papa Francisco!