1.
O Vaticano II, que foi o Pentecostes do século XX, tentou renovar,
descentrar a Igreja e levar os cristãos a serem agentes da
transformação da sociedade, segundo critérios de desenvolvimento, de
liberdade, de justiça e de paz, em colaboração com todos os seres
humanos preocupados em tornar melhor este nosso mundo. Foi a conclusão
de muitos movimentos que o precederam, catalisados pela leitura que
João XXIII fez dos sinais dos tempos.
Para as
novas gerações isto pode parecer mais antigo do que o Antigo
Testamento (AT). Se não tivermos em conta que a sensibilidade eclesial
e social muda rapidamente, também não compreenderemos a urgência do
Papa Francisco em reinterpretar o Vaticano II no mundo actual, muito
diferente dos anos 60 do século passado.
Não
podemos esquecer que o movimento cristão começou por se enxertar no
mundo judaico, mas também na perspectiva de se enxertar em todos os
povos e culturas.
É verdade que, nas suas primeiras manifestações, este movimento
pensava que o fim estava para breve. Não valia a pena influenciar os
destinos das sociedades humanas. Cada pessoa que esperasse o fim,
segundo a situação em que se encontrava, casada ou solteira. Era mais
importante salvar-se deste mundo do que salvar este mundo. S. Paulo,
na primeira carta aos Tessalonicenses, preocupava-se mais em organizar
o fim próximo do que em programar o futuro. Foi sol de pouca dura. Ele
próprio, na segunda carta apercebeu-se que se tinha enganado e não
tenta elaborar uma nova concepção. Opta por medidas pragmáticas: “
Quando estava entre vós já vos tinha dado a seguinte ordem: quem não
quiser trabalhar, também não coma. Ora, ouvi dizer que alguns de entre
vós levam a vida à toa, muito atarefados a não fazer nada. A estas
pessoas, ordeno e exorto, no Senhor Jesus Cristo, que trabalhem na
tranquilidade, para ganhar o pão com o próprio esforço.”[i]
Quando os Actos dos Apóstolos (Act) são escritos, o autor apresenta
Jesus Cristo bastante decepcionado: “ Estando reunidos, os discípulos
interrogaram-no: Senhor, é agora que ides restaurar a casa de
Israel? Resposta: Não vos compete conhecer os tempos e os momentos
que o Pai reservou em seu poder. Mas o Espírito Santo descerá sobre
vós e dele recebereis força. Sereis, então minhas testemunhas em
Jerusalém, em toda a Judeia e Samaria e até aos confins da terra.[ii]”
S. Lucas
era um artista em compor cenários dinâmicos. Era como se Jesus tivesse
dito: Eu acabei, mas a tarefa não. Pelo contrário, alargou o
horizonte, mas seria uma energia nova, o Espírito Santo, que levaria
os discípulos a realizá-la.
2.
No Domingo passado, celebramos uma despedida que o não era.
Ocultou-se dos seus olhos numa nuvem. Foi a Festa da Ascensão.
Interpretada em termos espaciais, poderia sugerir o que um miúdo me
perguntou: foi visitar os extra terrestres?
Outros
escritos do NT insistem em que Cristo, longe da nossa vista, continua
connosco até ao fim dos tempos em toda a nossa vida, mas como um
clandestino.
A
habilidade de S. Lucas consiste em não querer discípulos pasmados a
olhar para o céu, como se a sua missão não fosse a transformação da
Terra. Representa, por isso, a diferença que existe entre a Igreja
presa do medo e a Igreja sacudida, abalada pelo Espírito. “ Quando
chegou o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De
repente, veio do céu um ruído semelhante ao soprar de impetuoso
vendaval e encheu toda a casa onde se encontravam. Apareceram umas
como línguas de fogo, que se distribuíam e foram posar sobre cada um
deles. Ficaram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar
noutras línguas, conforme o Espírito os impelia.”[iii]
Havia uma
festa judaica para celebrar o dom da Lei com gente piedosa que vinha
de todas as nações. Confusão geral. Como é que cada pessoa ouvia falar
aqueles galileus, na sua própria língua? Estão com os copos.
Aí, Pedro, em nome do grupo não aguentou. Ainda não é hora para
bebedeiras. Está a cumprir-se a profecia de Joel: “Acontecerá, nos
últimos dias, diz o Senhor, que derramarei o meu Espírito sobre toda a
carne. Os vossos filhos e as vossas filhas hão-de profetizar, os
vossos jovens terão visões e os vossos velhos hão-de ter sonhos. Em
verdade sobre os meus servos e as minhas servas derramarei o meu
Espírito.”[iv]
3.
Se, como vimos, os primeiros cristãos pensavam que o mundo estava a
chegar ao fim, os Actos dizem-nos que está tudo a começar. Esta obra
deveria chamar-se o Livro das Aventuras do Espírito Santo. Faz
tudo às avessas do previsto no judaísmo. O próprio S. Pedro levou
tempo a compreender a liberdade de Deus. Quando teve de justificar,
perante os circuncisos, o seu comportamento de acolhimento dos
gentios, confessa: “Apenas eu começara a falar o Espírito Santo caiu
sobre eles, como sobre nós ao princípio. Lembrei-me, então desta
palavra de Senhor: João, dizia ele, baptizou com água, mas vós sereis
baptizados com o Espírito Santo. Se Deus lhes concedeu o mesmo dom que
a nós, que acreditamos no Senhor Jesus Cristo, quem sou eu para me
opor a Deus?”[v]
Os
sarilhos vão ser mais que muitos e vai ser preciso reunir um
Concílio, o primeiro da Igreja cristã, para reconhecer que o Espírito
de Deus não faz acepção de pessoas, nem de povos, nem de culturas. É o
Espírito da liberdade, do amor universal.
Não é para
aqui a leitura de dois mil anos de história das Igrejas cristãs no
mundo. No entanto, algo ficou testemunhado nos textos do NT. O caminho
do poder de dominação económica, política e religiosa, foi o
ambicionado pelos discípulos e sempre recusado pelo Mestre.
Disse-lhes, expressamente: quem quiser ser o primeiro, ponha-se ao
serviço de todos; aqui, reinar é servir. Isto significa que a Igreja
não anda para traz quando se confronta com este espelho. O que o
Espírito de Cristo lembra a todos os cristãos é simples: o nosso
passado, o nosso presente e o nosso futuro só é garantido pela
contínua criatividade.
Quiseram
fazer do Vaticano e das suas Cúrias o lugar do depósito da Fé.
Esta não é um depósito, é o caminho do mundo, como Evangelho da
Alegria. É sintomático que o Papa Francisco surja, simultaneamente,
com um programa de reforma da Cúria e com um programa de Igreja de
saída, para todas as periferias. Talvez seja o mesmo.
Perante as
novas experiências e expressões do Evangelho, Bergoglio poderá dizer
como Pedro: estava eu no meio desses pobres e abandonados e o Espírito
Santo caiu sobre eles como um novo Pentecostes. Quem sou eu para dizer
que Deus é só para os que têm assento nos lugares de poder da Igreja?
in Público
04.06.2017