1. Quando se pressentem
consequências graves de desentendimentos entre pessoas belicosas, diz-se,
à moda do Porto: vai cair o Carmo e a Trindade. Sobre a Trindade, muitos
católicos já não sabem muito mais. O antigo mundo rural orientava-se pelo
“toque das trindades”. O sino da Igreja paroquial tocava três vezes por
dia: de manhã, ao meio-dia e ao fim da tarde. Tudo parava, os homens
tiravam o boné, e rezava-se o “Anjo do Senhor”, seguido de uma “Avé Maria”
e do “Glória ao Pai, ao Filho e ao Espírito Santo”.
Quando se queria mostrar o cuidado da família com
o desenvolvimento religioso da criança, pediam-lhe: “mostra que já sabes
fazer o sinal da cruz”. Era um rosto marcado pela Trindade Santa.
Na catequese ou na teologia, ignorando os
recursos evocativos da linguagem simbólica, repousava-se no mundo dos
conceitos evanescentes. À falta de explicações satisfatórias, recorria-se
a uma geometria rudimentar, ao triângulo ou ao trevo do campo.
As argutas definições dogmáticas dos séculos II,
III e IV não se contentaram com a proclamação de Paulo em Atenas: é em
Deus que vivemos, nos movemos e existimos[i].
Sim, Deus, mas que Deus? Foi preciso mostrar que
era possível dizer que um só Deus vive misteriosamente em três pessoas
distintas, iguais e diferentes: todas activas, inteligentes, amantes, em
comunhão perfeita e sem qualquer subordinação! Era a vitória da máxima
unidade na floração da máxima diversidade.
Por mais estranha que pareça, esta convicção
talvez não seja nem absurda, nem inútil. Não poderá ela esconder a
realidade mais profunda e misteriosa do mundo, da família, da sociedade,
da política, da religião e da Igreja?
2. Em nome da unidade,
sacrifica-se a diversidade e a imprevisível liberdade, resvalando-se para
a falsa segurança da ditadura; perante as dificuldades de viver em
liberdade, na diversidade, no pluralismo, pergunta-se: será possível
conjugar governabilidade e democracia? Não serão os muros a recusa do
acolhimento recíproco entre diversas identidades num mundo que a
todos compete respeitar, como casa comum?
A sabedoria aconselha a que não se deite para o
caixote do lixo a afirmação trinitária de Deus que hoje é celebrada na
Igreja Católica. É um alerta político, cultural e religioso, como
sublinhou o filósofo Giorgio Agamben.
S. Paulo deu-lhe uma expressão quase narrativa:
A graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a comunhão do Espírito
Santo estejam com todos vós[ii].
Representa um belo sumário da teologia da unidade plural da Igreja, na
comunhão e na diversidade dos seus carismas. Por desgraça, os rituais não
conservam apenas as referências centrais de uma religião. Decaem,
facilmente, em rotinas que adormecem as consciências em vez de as
despertar para o que falta viver e fazer.
É legítimo perguntar: porque continuar a manter a
vergonhosa separação entre as Igrejas do Oriente e do Ocidente, invocando
minudências linguísticas esquecendo que estamos todos a balbuciar o
inabarcável mistério de Deus e do mundo? A verdade viva revela-se no
caminho humilde da busca espiritual e não no orgulho de manter
embalsamadas fórmulas e costumes em nome de ortodoxias vazias. Porque não
deixar Deus ser Deus e o seu Espírito à solta no mundo?
A arrogância de todas as Igrejas, em nome da
posse da verdade, acaba por afastá-las da alegria da comunhão na fé e na
caridade, impedindo-as da escuta recíproca e da pergunta essencial: não
poderei aprender nada com as outras comunidades cristãs, com as outras
religiões, com as pessoas que buscam, por tantos caminhos, um sentido para
a vida?
3. Estamos em 2017, a cinco
séculos de distância do gesto de Martinho Lutero, ao colocar, a 31 de
Outubro de 1517, as suas teses sobre o comércio de indulgências, na porta
da Igreja do Castelo de Wittenberg. De facto, o V Centenário da Reforma já
foi inaugurado, na Alemanha, em 2008. É a Década de Lutero.
É, também, uma ocasião para os historiadores da
cultura, da política e da teologia reexaminarem cinco séculos de história
extremamente complexa e, talvez, colherem algumas lições para o nosso
presente de renovados fanatismos políticos e religiosos.
Portugal não é a pátria de Lutero e os
portugueses também não o puderam acolher no séc. XVI, nem com
discernimento nem sem discernimento. Depois foram-no esquecendo.
Para assinalar os quatrocentos e cinquenta anos
da sua morte, o Centro de Estudos de Teologia/Ciência das Religiões, da
Universidade Lusófona, marcou essa data com um importante Colóquio, cujos
contributos já estão publicados. Tentei, no Prefácio, explicar as razões
da ausência de Lutero entre nós[iii].
O P. Carreira das Neves introduziu o seu
importante Lutero. Palavra e Fé, com a pertinente observação: «O
tema que vamos tratar tem sido objecto de milhares de livros, artigos e
pronunciamentos religiosos, políticos, sociológicos, filosóficos. Só
estranha o facto de nenhum autor português ter assumido, nestes quinhentos
anos que nos separam de Lutero, a responsabilidade de escrever sobre esta
pessoa que está na origem do protestantismo luterano e das igrejas
evangélicas»[iv].
O ausente de Portugal encontrou acolhimento, em
português, mas no Brasil, onde já foram publicados 12 volumes das Obras
Seleccionadas de Martinho Lutero[v].
O luterano Artur Villares pergunta: «Cinco
séculos depois, com a poeira da História a assentar, e as polémicas, ódios
e extremismos, definitivamente encerrados nas prateleiras da apologética
de todos os participantes, o que significa, para o homem de hoje, o nome
de Martinho Lutero? Para muitos nada; para outros tantos, um mero
revoltado, um rebelde, que destruiu a unidade da Igreja do Ocidente; para
outros ainda, uma figura histórica, de assinalável grandeza, um dos
construtores do mundo moderno».
O Pe. Carreira das Neves também perguntou:
«Lutero está ultrapassado?» E concluiu a sua obra com muita graça:
«estamos todos ultrapassados se nos fixarmos nos redutos das nossas
identidades religiosas, de ritualismos, jurisdicismos, dogmatismos,
farisaísmos»[vi].
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