1. Falar e escrever para
calar os outros era uma tradição papal que João XXIII interrompeu. O
exemplo não vingou, mas o Papa Francisco tem gosto em acolher, ouvir e
partilhar a palavra seja com quem for, seja onde for. Não aceita que a
Doutrina Social da Igreja continue a ser apenas a voz dos
Papas.
No passado dia 5 de Novembro, Bergoglio
acolheu, em Roma, o 3º Encontro dos Movimentos Populares. No anterior,
realizado na Bolívia, ficou claro que sem transformar as estruturas
não é possível vida digna para as populações. A luta continua e
entusiasma o argentino: “Vós, movimentos populares, sois semeadores de
mudança, promotores de um processo para o qual convergem
milhões de pequenas e grandes acções interligadas, de modo criativo,
como numa poesia. Foi por isso que vos quis chamar poetas sociais”.
O ritmo dessa poesia é marcado pelos passos
da caminhada rumo a uma alternativa humana face à globalização da
indiferença: 1. pôr a economia ao serviço dos povos; 2. construir a
paz e a justiça; 3. defender a Mãe Terra.
O discurso do papa é longo e multifacetado[i].
É uma antologia da vida dos movimentos populares na resistência à
tirania. Esta alimenta-se da exploração do medo e do terror. Os
cidadãos que ainda conservam alguns direitos são tentados pela falsa
segurança dos muros físicos ou sociais. Muros que prendem uns e exilam
outros. De um lado, cidadãos murados, apavorados; do outro, os
excluídos, exilados, ainda mais aterrorizados. Será esta a vida que
Deus, nosso Pai, deseja para os seus filhos?
2. Além de ser um bom
negócio para os comerciantes de armas e de morte, o medo destrói as
nossas defesas psicológicas e espirituais, anestesia-nos diante do
sofrimento do próximo e torna-nos cruéis.
Quando se festeja a morte de um jovem, que
talvez tenha errado o caminho, quando se prefere a guerra à paz,
quando se propaga a xenofobia, quando propostas intolerantes ganham
terreno, sabemos que por detrás de tal crueldade sopra o frio vento do
medo.
O Papa não esquece a capacidade mobilizadora
da oração: peço-vos que rezeis por todos aqueles que têm medo. O
próprio Jesus nos intima: Não tenhais medo[ii]!
Tende misericórdia. A misericórdia é muito melhor do que os remédios,
antidepressivos e tranquilizantes. Mais eficaz do que muros, grades,
alarmes e armas. E é grátis: uma dádiva de Deus.
Bergoglio acredita que todos os muros, mas
todos, vão ruir. «Continuemos a trabalhar para construir pontes entre
os povos, pontes que nos permitam derrubar os muros da exclusão e da
exploração». Enfrentemos o terror com o amor!
3. O fosso entre os povos
e as nossas actuais formas de democracia alarga-se cada vez mais, como
consequência do enorme poder dos grupos económicos e mediáticos, que
parecem dominá-las.
Sei, diz o Papa, que os movimentos populares
não são partidos políticos. Em grande parte, é nisto que se encontra a
vossa riqueza. Exprimis uma forma diferente, dinâmica e vital de
participação social na vida pública. Mas não tenhais medo de entrar
nos grandes debates, na Política com letra maiúscula, e cito Paulo VI:
«A política é uma maneira exigente — não a única — de viver o
compromisso cristão ao serviço do próximo». Ou então a frase que
repito muitas vezes e já não sei se é de Paulo VI ou de Pio XII: «A
política é uma das formas mais altas da caridade, do amor».
Frisa, então, dois riscos na relação entre
movimentos populares e política: o de se deixarem encurralar e o de se
deixarem corromper.
Não se deixar cercar, porque alguns dizem: a
cooperativa, o refeitório, a horta agro-ecológica, as micro
empresas, o projecto dos planos assistenciais... até aqui tudo
bem.
Enquanto vos mantiverdes no âmbito das
«políticas sociais», enquanto não puserdes em questão a política
económica ou a Política com «P» maiúsculo, sois tolerados. A ideia das
políticas sociais concebidas como uma política para os pobres,
mas nunca com os pobres, nunca dos pobres e muito menos
inserida num projecto que reúna os povos, às vezes parece-me um
carro de carnaval a esconder o lixo do sistema.
Quando vós, da vossa afeição ao território,
da vossa realidade diária, do bairro, do local, da organização do
trabalho comunitário, das relações de pessoa a pessoa, ousais pôr em
causa as macro relações, quando levantais a voz, quando
gritais, quando pretendeis indicar ao poder uma organização mais
integral, então deixais de ser tolerados. Estais a deslocar-vos para o
terreno das grandes decisões que alguns pretendem monopolizar em
pequenas castas. Assim a democracia atrofia-se, torna-se um
nominalismo, uma formalidade, perde representatividade, vai-se
desencantando porque deixa de fora o povo na sua luta diária pela
dignidade, na construção do seu destino.
Não estará o Papa a meter-se em seara alheia?
Sem qualquer monopólio da verdade, deve pronunciar-se e agir face a
«situações nas quais se tocam as chagas e os sofrimentos dramáticos, e
nas quais estão envolvidos os valores, a ética, as ciências sociais e
a fé».
Continuaremos no próximo Domingo do Advento.
in Público
04.12.2016
[i]
O meu texto pretende chamar a atenção para o discurso do Papa. Não
procura reproduzi-lo. Os recortes e as paráfrases são da minha
responsabilidade.