1. Graças a Deus, há
sempre algum amigo que se julga encarregado de me chamar à
“realidade”. Convidado para umas mini férias na Semana Santa,
observei que, para mim, não era a melhor altura. O amigo não me largou
sem uma viagem pela sua visão do mundo, em forma de sermão, que passo
a resumir: isto já não vai com cerimónias, nem com as da Páscoa, nem
com as outras. Estamos cercados de guerras por todos os lados e sem
qualquer proposta para enfrentar a desordem mundial em que estamos
mergulhados. A paixão pela dominação económica e financeira não recua
diante de nada. O apelo aos direitos humanos tornou-se uma invocação
de rotina.
A chamada UE já não sabe para que nasceu. A
promovida divisão entre a Europa rica e a Europa pobre - divisão
reproduzida também dentro de cada país – fabricou a burocracia que
esvaziou o seu desígnio primeiro. Esquecida da responsabilidade
solidária, parece que nenhuma refundação a poderá salvar.
Continuaremos na dúvida se vale a pena discutir a dívida.
Por outro lado, com a recusa, ao longo do
tempo, em resolver o conflito israelo-palestino, sucederam-se, no
Médio Oriente, loucas intervenções norte-americanas e europeias. O
Ocidente, de alma vazia, confrontado com as estratégias terroristas de
poder político-religioso (daesh), discute na Europa, a partilha dos
refugiados. Nos Estados Unidos e no norte europeu crescem os desejos
de muralhas salvadoras.
Agradeci este rápido percurso. Observei que,
perante ameaças de guerra ou de catástrofes, nunca há dinheiro para as
soluções razoáveis e baratas. Surgem sempre financiadores da estupidez
desumanizante e nunca faltarão propostas de negócio depois do
desastre. O sofrimento humano não conta e os mortos não se queixam.
2. Ao contrário do que
pensa este amigo, não existem apenas celebrações vazias, onde não
acontece nada, que se esgotam na encenação do seu teatro mais ou menos
cuidado. Não é decisivo saber se tudo se passou, do ponto de vista
histórico, como vem narrada, nos Evangelhos, a Paixão de Jesus Cristo.
Recorde-se que, no povo judeu palestino,
desde os finais do séc. I a. C até ao séc. II d. C., surgiram diversos
movimentos libertadores, directamente políticos ou proféticos. Eram,
por isso, variadas as figuras messiânicas: chefe político libertador,
em geral de ascendência de David; um profeta proclamando a vontade de
Deus e actuando com sinais específicos ou, ainda, a de sacerdote à
frente da nova e definitiva comunidade teocrática, com Deus como único
soberano.
Segundo as circunstâncias e no meio de tantas
propostas polémicas, é normal que os judeus que reconheceram em Jesus
de Nazaré o Messias tivessem o cuidado de reconfigurar a originalidade
de Jesus como Cristo, como Messias[i].
A celebração da Eucaristia estava enquadrada
numa nova forma de entender e praticar a vida cristã, nas suas
diferentes comunidades, como se pode ver na narrativa dos
Discípulos de Emaús[ii].
Não era apenas, nem sobretudo, a reprodução
de uma cerimónia estereotipada. S. Paulo, que apresenta a narrativa
mais completa da Ceia do Senhor[iii],
fez também o protesto mais acutilante contra a prática de
descriminação social na celebração da Eucaristia, que ele próprio
recebeu e transmitiu à comunidade de Corinto.
As comunidades joaninas celebravam, como
todas as outras, a Ceia do Senhor em termos muito próximos da
narrativa transmitida por S. Paulo. No entanto, no 4º Evangelho, a
Ceia termina com o gesto que exprime a transformação que a Eucaristia
semanal deve produzir nos seus participantes: a prontidão para o
serviço[iv].
Quando se diz: fazei isto em memória de Mim, com o Lava-pés
afirma-se que a memória da Igreja terá de ser, no futuro, a reinvenção
desta prática e não apenas uma colecção de ritos. Daí a discussão com
Pedro, que não estava a gostar nada do programa incluído no gesto
despropositado do Mestre. Ao referir apenas o Lava-pés dos
discípulos, enuncia-se a lei geral do Cristianismo: a árvore
conhece-se pelos frutos.
3. Diz-se que o Papa alterou o ritual da 5ª
feira Santa: as mulheres já podem ser incluídas na cerimónia do
lava-pés. É uma forma miserável de anestesiar e reduzir o sentido da
intervenção do Papa. A alteração que o seu gesto visa provocar não é
de tipo ritual, mas de acção transformadora. Pertence ao seu programa
de ver o mundo a partir dos excluídos. Levar o centro às periferias.
O Papa Francisco compreendeu que era preciso
pôr a Igreja a mexer, como Maria Julieta Mendes Dias e
António Marujo intitularam o 4º volume da selecção das minhas crónicas[v],
cuja realização só tem sido possível pela sua grande competência e
extraordinária dedicação. Recolheram muitos anos da hospitalidade do
Público e de esforço empenhado de Guilhermina Gomes.
O gesto chocante de Jesus, próprio de um
escravo, tinha sido neutralizado pelo ritual. O Papa Francisco
restituiu-lhe a força de interpelação. Ao questionar a sua solenidade
aos pés de gente, aparentemente, pouco recomendável, fez dele a
bússola da Igreja.
Frei Bento Domingues, O.P.
in Público 20.03.2016