1. Se Jesus existiu como realidade histórica – e
raros são os que se atrevem a negar - é normal que tenha nascido. Quem
reconhecer nele a condição humana no seu ponto mais belo, luminoso e
humilhado, é justo que celebre este acontecimento.
As datas e os lugares elaborados para as festas, os
cenários, as lendas e os mitos compostos pelas narrativas de S. Mateus e
de S. Lucas (sem contar com os apócrifos) reflectem perspectivas
teológicas e messiânicas diferentes. Nesses exercícios de antecipação para
a infância da missão que apenas se manifestou na vida adulta de Jesus, os
seus autores serviram-se dos materiais da cultura ambiente para
reconfigurarem uma convicção: com Jesus, o evangelho da paz e da
alegria de Deus incarnou na fragilidade humana. A salvação não está na
fuga do mundo, mas na sua transformação, a partir das periferias mais
condenadas. Como sempre, nas narrativas do Novo Testamento parece que tudo
já estava previsto no Antigo, mas é sempre para introduzir o imprevisível.
Procurar em textos poéticos, lições
positivistas de história, geografia ou biologia- “antes do parto, durante
o parto e depois do parto” – apresenta-se como uma piedosa invenção para
dizer que Jesus é sempre alguém completamente fora de série, na mais
precária das situações. Os músicos, os poetas e os pintores da cultura
popular e erudita não se enganaram quando deram asas à sua criatividade
para fazer ouvir sons futuros de uma humanidade liberta.
Hoje, num clima cultural dominado pelo prestígio da
ciência e da técnica, o recurso à crença em milagres, está reservado para
os momentos de extrema aflição. Fazer de Deus um tapa buracos das
insuficiências humanas é uma das formas mais frequentes de facilitar o
caminho ao ateísmo. A fé na presença divina no nosso quotidiano tem
itinerários muito diferentes de pessoa para pessoa. As receitas para
cozinhar a vida espiritual tornam a comida sem graça. Como respiração
da vida e iluminação da nossa noite só pode ser acolhida pelo silêncio
intenso e acordada pela grande música: silêncio que cante e música que nos
deixe sem palavras. A ponte para o divino exige a transfiguração do nosso
olhar e da nossa escuta. A mediocridade é a receita fatal.
2. Acreditar nos credos é uma idolatria.
O dominicano S. Tomás de Aquino, um filósofo, um biblista, um teólogo e um
poeta medieval, insistiu em algo essencial e libertador: o terminal do
acto de fé não são os “artigos da fé” – estes são apenas mediações - mas a
inabarcável realidade de Deus[1].
Para não se cair no fideísmo, a fé não pode saltar por cima da
inteligência, nem renegar o seu exercício. Não pode haver assentimento à
proposta da fé teologal sem ver nela uma perfeita expansão e superação da
inteligência[2].
A simbólica da fé ou dá que pensar e transformar ou aliena. Quem se fixa
no dedo que aponta o céu e a urgência da terra, perde o céu e a terra.
O exercício da razão é tão importante que o citado
teólogo se atreveu a escrever o seguinte: embora acreditar em Cristo seja,
por si mesmo, bom e necessário à salvação, pode, acidentalmente,
transformar-se num mal: se alguém, em consciência, pensa que Ele é um mal,
peca se o confessar como um bem[3].
No entanto, importa lembrar a paradoxal declaração de I. Kant, no prefácio
à primeira edição da Crítica da Rasão Pura: ”A razão humana tem
este destino singular, num género dos seus conhecimentos, de ser dominada
por questões que não pode evitar, pois são-lhe impostas pela sua própria
natureza, mas às quais não pode responder porque ultrapassam totalmente o
poder da razão humana”[4].
3. Situar Jesus na lista das grandes
personalidades do passado é uma questão de memória cultural e nenhuma se
lhe pode comparar. Não deixou nada escrito, mas a sua própria existência é
o mais belo e imortal poema de amor. Se há modelo de vida verdadeira, não
é preciso ir mais longe, mas ninguém pode dizer que é o herdeiro exclusivo
das suas palavras, dos seus gestos. Deu origem a várias narrativas e
interpretações. Deixou tudo em aberto. O próprio autor do 4º Evangelho tem
a humildade de ser exagerado: (…) Há, porém, muitas coisas que Jesus
fez e que, se fossem escritas uma por uma, o mundo não poderia conter os
livros que se escreveriam[5].
Existem várias e boas razões para celebrar o Natal. Em
muitos casos é a festa da família e este é um dos seus melhores frutos. Se
contribuir para refazer ou fortalecer os laços familiares, a Sagrada
Família torna-se muito numerosa: fazer família com quem não é da família é
continuar a revolução de Jesus de Nazaré, do mundo todo.
Bom Natal.
[1]
S.Th. II-II, q.1. a. 1 ad 2
[2]
Ib. II-II, q. 8, a. 8 ad 2
[4]
Citado por Jean Greisch, Comprendre et Interpréter,
Beauchesne, Paris, 1993, pp
432
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