1. O ciclo de tertúlias, de Janeiro a
Novembro de 2016, na Biblioteca de Belém, é inteiramente dedicado às
mulheres. No passado dia 29, o tema era As mulheres na Igreja,
desenvolvido pela filósofa Maria Luísa Ribeiro Ferreira e moderado por
Maria João Sande Lemos. Como carta fora do baralho, pediram-me uma
intervenção.
Lembrei-me, imediatamente, da antiga distribuição
das pessoas no espaço da igreja da minha aldeia: os homens à frente,
as mulheres e crianças atrás. O padre dizia a Missa, em latim, de
costas para todos.
As mulheres limpavam a igreja, enfeitavam os
altares e algumas ensinavam a “doutrina” às crianças. Dizem-me que,
nas igrejas das cidades, as actividades e associações femininas eram
mais abundantes e variadas.
A partir dos anos 30 do século passado, a Acção
Católica teve um papel muito activo na renovação da vida da Igreja.
Manteve, em todas as suas expressões, a separação entre masculina e
feminina. O assistente era sempre um padre.
Nos anos 60, para os Cursos de Cristandade, a
religião não era para mulheres. A versão feminina surgiu
apenas para que elas pudessem entender o repentino fervor dos maridos
cursilhistas.
Na mesma época, casos como o da Juventude de
Cristo Rei - inteiramente misto e em perfeita autogestão
democrática – eram raros.
Os chamados Institutos femininos de Vida
Consagrada nunca precisaram de nenhuma ordem para se
multiplicarem, mas também nunca eram dispensados da autorização
masculina.
Compreendo que as novas gerações já não saibam o
que isso quer dizer e as mais velhas não gostem de o lembrar. No
entanto, o tema, As mulheres na Igreja, é recorrente, mas falar
do papel dos homens na Igreja parece insólito. Porque será?
2. Para o teólogo jesuíta, J. Moingt, a
propósito desta e de outras questões, é indispensável reencontrar o
Evangelho. Só ele poderá salvar a Igreja[i].
É preciso, de facto, alterar os termos do debate. Segundo as quatro
versões do Evangelho, Jesus nunca teve nenhum problema com as
mulheres. As suas dificuldades foram sempre com os discípulos que Ele
próprio escolheu. O Evangelho de S. Marcos sublinha, várias vezes, que
os apóstolos não compreendiam nem as palavras e nem os actos de Jesus[ii].
Vendo mais de perto os textos, a razão do
desentendimento parece-me ser a seguinte: Jesus venceu as chamadas
tentações messiânicas da dominação económica, política e religiosa; os
discípulos deixaram tudo para o seguirem, mas com a ideia de que
faziam um bom negócio. Jesus tomaria o poder e seriam eles a ocupar os
postos ministeriais. A discussão, entre eles, era sempre a mesma: Quem
seriam os primeiros? A determinada altura, os filhos de Zebedeu, Tiago
e João, não aguentaram a espera e foram ter directamente com o mestre:
Concede-nos que, na tua glória, nos
sentemos um à tua direita e outro à tua esquerda.
Jesus respondeu: Nem pensem! Mas há algo mais
interessante ainda: Os outros dez, tendo ouvido isto, começaram a
indignar-se contra Tiago e João. Jesus
chamou-os e disse-lhes: Sabeis que aqueles que vemos governar as
nações as dominam e os seus grandes as tiranizam. Não
deve ser assim entre vós. Quem quiser ser grande entre vós, faça-se
servo e
quem quiser ser o primeiro entre vós, faça-se o servo de todos. Pois
também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e
dar a sua vida em resgate por todos.
Segundo os Actos dos
Apóstolos[iii],
mesmo depois da ressurreição, os discípulos não desarmaram: Senhor,
é agora que haveis de restaurar a realeza em Israel? Jesus já não
aguenta mais essa ambição teimosa de poder: só o Espírito Santo será
capaz de os mudar!
O espantoso é que Jesus não escolheu as mulheres
para discípulas. Foram elas que o escolheram, seduzidas pelo que ele
era[iv],
sem qualquer miragem de poder. Pelo contrário, seguiram-no até à cruz
e ao sepulcro, sem nunca lhe pedir nada em troca e prontas a financiar
o seu projecto[v].
Destas discípulas, Jesus ressuscitado fez apóstolas
do futuro do Evangelho no mundo. São elas as encarregadas de
evangelizar os apóstolos, os discípulos: Eis que Jesus veio ao seu
encontro e lhes disse: Alegrai-vos. Elas, aproximando-se,
abraçaram-lhe os pés, prostrando-se diante dele. Então Jesus disse:
Não temais! Ide anunciar a meus irmãos que se dirijam para a Galileia;
lá me verão[vi].
3. Quando se voltar a ter em conta a força
desta cena ressuscitante, as discussões sobre os ministérios das
mulheres na Igreja, impôr-se-á a pergunta: teremos autoridade para
desordenar aquelas que Jesus ordenou? Elas não procuraram
ministério nenhum. A vida delas foi de puro serviço do amor. Foi Jesus
ressuscitado que, espontaneamente, as encarregou de evangelizar
aqueles que, toda a vida, apenas procuravam o poder.
Se não quisermos continuar no ridículo, teremos de
voltar a este tema.
in Público
09.10.2016