1.
Só acreditas em Deus porque te dá jeito. Recebo muito bem esta velha
censura de amigos agnósticos e ateus. Só me faltava acreditar porque
via nisso uma desgraça.
O que torna a ideia de Deus inacreditável
ou inaceitável para muitas pessoas, já foi expressa de mil maneiras.
Em alguns meios, a mais corrente é esta: Deus não pode ser
simultaneamente omnisciente, omnipotente e bom. Diante do sofrimento
do mundo não sabe, não pode, ou não é tão infinitamente bom como se
diz. Há outras razões mais sofisticadas de ateísmo. Não pretendo
refutar nenhuma. Haverá sempre razões para dizer sim e razões para
dizer não. Quando perguntaram a Einstein se acreditava em Deus,
respondeu: primeiro gostaria de saber em que Deus está a pensar ao
fazer essa pergunta.
Conheço confissões de fé em Deus que, para
mim, são tão perversas que gostaria que não existissem. A Divindade
foi e é invocada para fazer guerras e extermínio de populações. Na
própria Bíblia há passagens, Livros e Salmos, absolutamente
insuportáveis, mas não aconselharia a sua eliminação. Ao dizerem o que
não se deveria nunca dizer de nenhum deus, revelam aquilo de que somos
capazes: de colocar na boca de Deus os nossos interesses, mesquinhos
ou detestáveis.
Por outro lado, quando, perante uma
desgraça, natural ou provocada, se diz que é a vontade de Deus,
sei que não acredito nessa peça do determinismo. Espero que Deus não
tenha tão má vontade.
2. Gostar de sofrer,
seja por que motivo for, não me parece uma virtude, mas uma doença. A
glorificação do sofrimento tornou-se a marca de certo cristianismo que
julga encontrar na cruz de Cristo a sua justificação. A
espiritualidade dolorista não tem nada a ver com o
Espírito do Evangelho. Não consta que Jesus gostasse de sofrer e muito
menos de ser crucificado. Pelo contrário, gostava da vida e apenas
queria que ela fosse abundante para todos. Sentou-se à mesa de santos
e pecadores sem nunca exaltar o jejum. Por alguma razão, os seus
adversários o acusaram de glutão e beberrão[i].
Ao fazer uma cruz na fronte de quem pede o
Baptismo, já tenho ouvido esta observação: porque marcam a criança ou
o adulto com o sinal da suprema crueldade? Sinto sempre necessidade de
esclarecer: Jesus Cristo nunca desejou a cruz. A sua proposta era e é
um caminho de alegria, o Evangelho da libertação. Foi assim que se
apresentou na sua própria terra natal[ii].
Se gostasse de ver as pessoas a sofrer, não se teria comovido com a
doença, física e psíquica, com a morte. Não teria exaltado a ética
samaritana e denunciado a situação dos oprimidos. A cruz foi-lhe
imposta pelos donos da dominação religiosa e política. Preferiu ser
crucificado a renegar o seu projecto de libertação divina e humana.
3. Quando me dizem que
acredito em Deus porque isso me dá jeito, tenho de dizer que sim.
Jesus Cristo não trouxe uma explicação de Deus, do ser humano, do
sofrimento ou da morte, mas não se rendeu ao fatalismo. Nada tem de
ser sempre assim, pelos séculos dos séculos. Sem ver o resultado final
da sua intervenção, Jesus anunciou uma lógica muito original: quem
perde, ganha e quem ganha, perde. Gastar a vida a dar alegria aos
que precisam, mesmo que seja de um copo de água, é tocar o Reino dos
Céus, transformando as relações humanas no que têm de mais exaltantes
ou de mais banal.
Os avanços científicos e técnicos não são
promessas de vida eterna. Que Deus os abençoe pela vida, pelo alívio e
pela esperança que trazem à nossa viagem. Ajudam-nos a vencer a falsa
mística do sofrimento.
Escrevo este texto depois do funeral do
Frei Luís França. Sofreu muito, sem nunca se render. Cantámos, numa
música muito bela, este poema de Frei José Augusto Mourão:
Não pode a morte reter-me na cruz. /Não
pode o mundo arrancar-me à raíz./ Ao pé de Deus hei-de sempre viver./
Com Deus cheguei e com Ele vou partir.//Não pode a morte apagar o
desejo/ de ver a Deus face a face e viver./ A Deus busquei toda a
vida/ vivi de acreditar no infinito da vida.// Não nos reduz o escuro
da noite./ Não pode o amor esquecer o que o altera./ Já ouço a voz do
Senhor, Deus dos vivos/ já ouço a voz do amigo que vem.// A Ti a vida
me toma e transporta./ Teu sangue inunda meu corpo de paz./ Eu vejo as
mãos do Senhor glorioso/ nas minhas mãos a memória de Deus.// A Ti
Senhor, meus desejos regressam./ Findo o andar, disponíveis as mãos./
Abre meu corpo ao devir que não sei/ eu chamo a esperança pelo nome de
Deus.
Ilumina meus olhos da luz do teu Dia, e que
um canto de paz me acorde da morte.
in Público 03.07.2016