FREI BENTO, OP
Bento Domingues (Portugal), teólogo, professor, escritor, pertence à
Ordem dos Dominicanos
Gostar de sofrer: mística ou doença

1. Só acreditas em Deus porque te dá jeito. Recebo muito bem esta velha censura de amigos agnósticos e ateus. Só me faltava acreditar porque via nisso uma desgraça.

O que torna a ideia de Deus inacreditável ou inaceitável para muitas pessoas, já foi expressa de mil maneiras. Em alguns meios, a mais corrente é esta: Deus não pode ser simultaneamente omnisciente, omnipotente e bom. Diante do sofrimento do mundo não sabe, não pode, ou não é tão infinitamente bom como se diz. Há outras razões mais sofisticadas de ateísmo. Não pretendo refutar nenhuma. Haverá sempre razões para dizer sim e razões para dizer não. Quando perguntaram a Einstein se acreditava em Deus, respondeu: primeiro gostaria de saber em que Deus está a pensar ao fazer essa pergunta.

Conheço confissões de fé em Deus que, para mim, são tão perversas que gostaria que não existissem. A Divindade foi e é invocada para fazer guerras e extermínio de populações. Na própria Bíblia há passagens, Livros e Salmos, absolutamente insuportáveis, mas não aconselharia a sua eliminação. Ao dizerem o que não se deveria nunca dizer de nenhum deus, revelam aquilo de que somos capazes: de colocar na boca de Deus os nossos interesses, mesquinhos ou detestáveis.

Por outro lado, quando, perante uma desgraça, natural ou provocada, se diz que é a vontade de Deus, sei que não acredito nessa peça do determinismo. Espero que Deus não tenha tão má vontade.

2. Gostar de sofrer, seja por que motivo for, não me parece uma virtude, mas uma doença. A glorificação do sofrimento tornou-se a marca de certo cristianismo que julga encontrar na cruz de Cristo a sua justificação. A espiritualidade dolorista não tem nada a ver com o Espírito do Evangelho. Não consta que Jesus gostasse de sofrer e muito menos de ser crucificado. Pelo contrário, gostava da vida e apenas queria que ela fosse abundante para todos. Sentou-se à mesa de santos e pecadores sem nunca exaltar o jejum. Por alguma razão, os seus adversários o acusaram de glutão e beberrão[i]. 

Ao fazer uma cruz na fronte de quem pede o Baptismo, já tenho ouvido esta observação: porque marcam a criança ou o adulto com o sinal da suprema crueldade? Sinto sempre necessidade de esclarecer: Jesus Cristo nunca desejou a cruz. A sua proposta era e é um caminho de alegria, o Evangelho da libertação. Foi assim que se apresentou na sua própria terra natal[ii]. Se gostasse de ver as pessoas a sofrer, não se teria comovido com a doença, física e psíquica, com a morte. Não teria exaltado a ética samaritana e denunciado a situação dos oprimidos. A cruz foi-lhe imposta pelos donos da dominação religiosa e política. Preferiu ser crucificado a renegar o seu projecto de libertação divina e humana.

3. Quando me dizem que acredito em Deus porque isso me dá jeito, tenho de dizer que sim. Jesus Cristo não trouxe uma explicação de Deus, do ser humano, do sofrimento ou da morte, mas não se rendeu ao fatalismo. Nada tem de ser sempre assim, pelos séculos dos séculos. Sem ver o resultado final da sua intervenção, Jesus anunciou uma lógica muito original: quem perde, ganha e quem ganha, perde. Gastar a vida a dar alegria aos que precisam, mesmo que seja de um copo de água, é tocar o Reino dos Céus, transformando as relações humanas no que têm de mais exaltantes ou de mais banal.

Os avanços científicos e técnicos não são promessas de vida eterna. Que Deus os abençoe pela vida, pelo alívio e pela esperança que trazem à nossa viagem. Ajudam-nos a vencer a falsa mística do sofrimento.

Escrevo este texto depois do funeral do Frei Luís França. Sofreu muito, sem nunca se render. Cantámos, numa música muito bela, este poema de Frei José Augusto Mourão:

Não pode a morte reter-me na cruz. /Não pode o mundo arrancar-me à raíz./ Ao pé de Deus hei-de sempre viver./ Com Deus cheguei e com Ele vou partir.//Não pode a morte apagar o desejo/ de ver a Deus face a face e viver./ A Deus busquei toda a vida/ vivi de acreditar no infinito da vida.// Não nos reduz o escuro da noite./ Não pode o amor esquecer o que o altera./ Já ouço a voz do Senhor, Deus dos vivos/ já ouço a voz do amigo que vem.// A Ti a vida me toma e transporta./ Teu sangue inunda meu corpo de paz./ Eu vejo as mãos do Senhor glorioso/ nas minhas mãos a memória de Deus.// A Ti Senhor, meus desejos regressam./ Findo o andar, disponíveis as mãos./ Abre meu corpo ao devir que não sei/ eu chamo a esperança pelo nome de Deus.

Ilumina meus olhos da luz do teu Dia, e que um canto de paz me acorde da morte.

in Público 03.07.2016


[i] Lc 7, 33-35

[ii] Lc 4, 14-44

 
 

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