1. O que verdadeiramente
custa é o presente. Quando o presente é difícil de enfrentar,
refugiamo-nos no passado, no culto da memória, ou sonhamos com um futuro
consolador. Na celebração do Pentecostes, passamos de uma Igreja
apavorada, com sonhos de um império que nunca mais chegava, para um
presente que varria todos os medos e impulsionava os mais assustados a
percorrer os caminhos do mundo. Um impetuoso vendaval desatou todas as
cadeias. Apareceram umas línguas de fogo que encheram os discípulos de uma
corajosa sabedoria: tornara-se possível entender que Deus estava mesmo do
lado das opções de Jesus Cristo. Doravante, a causa do Evangelho podia ser
de plena actualidade, em qualquer língua, povo ou cultura. O futuro
começava no presente. O próprio desentendimento entre hebreus e helenistas
anunciava que a alegria do Evangelho não podia ser propriedade privada de
nenhum povo ou cultura. Não é a globalização que arrasa as
diferenças: cada um os ouvia na sua própria língua[i].
O cristianismo só pode viver saudavelmente a
partir de um presente criador. Quando enfatiza o passado, afoga-se no
depósito da Fé ou na indústria da conserva dogmática. Quando foge para o
Paraíso, perde a terra e o céu. Um dos dramas do catolicismo na
época moderna foi sintetizado numa expressão luminosa de Yves Congar: a
uma religião sem mundo, sucedeu um mundo sem religião. Tinha-se
perdido o sentido da incarnação contínua do divino no humano.
O que este Papa tem de tão especial é a
capacidade de nos mostrar que não adianta desviar os olhos da complexidade
do mundo actual, em qualquer latitude. Não é para nos resignarmos! O que
lhe importa, e que nos deve interessar, é a resposta a esta pergunta: como
poderemos transformar esta situação num mundo melhor? É a exigência de
lucidez para o nosso presente que o impele a ir beber a todas as fontes e
momentos da tradição cristã, sem nunca esquecer o contributo das diversas
sabedorias, religiosas ou seculares, do presente e do passado, sem ficar
prisioneiro de nenhuma.
2. A concepção dinâmica do
cristianismo, como ressurreição contínua, foi aplicada por Tomáš
Halík[ii] à própria
celebração dos sacramentos. É importante para não se cair em automatismos
mecânicos ou místicos. Tínhamos um catolicismo de baptizados com mais ou
menos sacramentos e assunto arrumado.
Esta atitude na acção pastoral, apesar de todas
as correcções que lhe possam introduzir, é um desastre.
Quando, no catecismo, se pergunta o que nos faz
discípulos de Cristo, responde-se que é o Baptismo. Resposta certa, mas
que não evita o inconveniente da ideia de um automatismo. Fez-se a
cerimónia, está baptizado. A pergunta mais fecunda é um pouco diferente.
Como nos tornamos cristãos? Uma pessoa não se torna subitamente
cristã: é um processo.
O autor referido confessa que quantas mais
pessoas acompanha na preparação para o Baptismo e quantas mais baptiza,
mais se apercebe que o baptismo é um sacramento dinâmico. Tal como
o Matrimónio e a Ordem, o Baptismo é um acontecimento que não fica
completo no momento em que é conferido, mas que tem efeito de permear o
futuro de uma vida, se consentirmos activamente nesse processo. É um
fermento que precisa de ser levedado.
Se T. Halík já tinha falado da ressurreição
contínua, ao referir-se à vitória de Jesus sobre a morte, pode, agora,
falar dos sacramentos como acção contínua. Deus não está ligado aos
Sacramentos. Está presente na sede espiritual das pessoas, seguindo um
processo complexo, muitas vezes como uma peça de teatro fascinante, com
muitos actos, com inesperadas viragens no enredo, além de intervalos e
catarses.
3. A actualidade cristã, para
conservar a sua frescura, tem de regressar às fontes, mas não pode
ser um trabalho de pura arqueologia ou de visita às bibliotecas
patrísticas. Seria perder-se no passado. A viagem de ir e vir das fontes
para a actualidade e da actualidade para as fontes é a única que nos pode
guiar para abrir janelas para o futuro.
A obra de Isidro Lamelas[iii]
é indispensável para beber nas melhores fontes. Fazia muita falta dispor
dos verdadeiros clássicos do cristianismo, traduzido para português das
línguas originais. Bem-haja!
A investigação só atrapalha a preguiça ou o medo.
É curioso que ao completar 100 anos das chamadas Aparições de Fátima,
o contributo das ciências humanas, das experiências pastorais, das
narrativas testemunhadas, dos percursos espirituais dos peregrinos, da
reflexão teológica sejam de uma magreza de escrita muito estranha. A maior
peregrinação do Ocidente confia no seguinte: cada peregrino tem a sua
Fátima e ninguém tem nada com isso. A hierarquia apenas lhe dá um cenário
litúrgico, mas o colectivo, como colectivo só se reconhece na Procissão
das Velas e no Adeus. Que dizer da devoção à imagem de N. Senhora de
Fátima obrigada a ser ainda mais peregrina do que os peregrinos?
[ii]
Tomáš Halík, Quero que tu sejas! Podemos Acreditar no Deus do
Amor?, Paulinas, 2015, pp 155-157
[iii]
Isidro Pereira Lamelas, Sim, Cremos. Os credos explicados pelos
Padres da Igreja. Lisboa, UCT 2013; As origens do Cristianismo, Padres
Apostólicos, Paulus, 2016
in Público 15.05.2016
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