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FREI BENTO, OP |
Bento Domingues
(Portugal), teólogo, professor, escritor, pertence à Ordem dos
Dominicanos |
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COM QUEM COMEÇAR O NOVO ANO?
(I) |
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Público 03JAN2016
1. Um católico fervoroso tentou convencer-me de que a
preocupação com a Bíblia e mesmo com os textos do Novo Testamento era
prejudicial à sua fé, pois suscitavam-lhe muitas dúvidas e, para viver, as
certezas é que são precisas. Tinha ficado muito satisfeito, no entanto, ao
ouvir dizer que, “ao contrário do Judaísmo e do Islão, o Cristianismo não
era uma religião do Livro. Era uma ligação espiritual a Jesus Cristo que,
aliás, não tinha deixado nada escrito. Nenhuma doutrina ou prática moral
se poderia reclamar dele”.
Perante semelhante desistência intelectual, não entrei
na conversa. Por outro lado, também não disponho de respostas rápidas para
questões complexas, como tantas vezes me foi pedido nesta quadra
natalícia. Uma, repetida por vários leitores, regressou como se fosse a
primeira vez: afinal, quem é o fundador do Cristianismo?
Um famoso historiador das origens cristãs, Antonio
Piñero, em várias das suas obras e intervenções, sustenta que nenhuma das
ideias do Novo Testamento, isoladamente consideradas, é original. A
teologia deste conjunto de escritos não é um meteorito descido do céu. É
um produto da história teológica, social e literária anterior que importa
conhecer para compreender o nosso passado religioso e de certo modo, o
próprio Ocidente.
Para ele, o Ano I[1],
aquele em que Jesus nasceu, não pode ser passado nem por alto nem ao lado.
Nesse momento, o judaísmo - e o cristianismo que dele nasceu -
encontram-se a cavalo entre dois mundos: o greco-romano e a herança
judaica muito plural. Esse é o ano preparado para o nascimento do
cristianismo e para a sua ideia messiânica de salvação, que brota tanto de
Israel como do mundo greco-romano que o rodeia.
A prova contundente dessa afirmação encontra-a A.
Piñero, na IV Égloga de Virgílio. Este poeta tão profundamente
romano e, aparentemente, tão afastado do mundo judaico, compôs um famoso
canto a um misterioso divino infante, cujo nascimento inaugura uma nova
idade de oiro do mundo. Um poema, aqui adaptado, que até parece um
apocalipse messiânico judaico: Aí vem a idade última anunciada nos
oráculos de Sibila. Com um menino que vai nascer será finalmente concluída
a idade de ferro e por todo o mundo irá surgir uma idade doirada… Olha
como se agitam o mundo sobre o seu pesado eixo, a terra e o espaçoso mar
com o profundo céu. Olha como tudo se regozija com o novo século que há-de
chegar.
Esperava-se, nesse momento, tanto entre judeus como
entre gentios, que o universo mudasse de signo para uma nova salvação.
Ao dar à luz Jesus de Nazaré, personagem transcendental
no desenvolvimento do Ocidente, o Ano I é para Piñero, um dos
mais importantes para a História universal.
2. Não se trata de uma afirmação gratuita. O
autor explica, ao longo da sua obra, de forma rigorosa e pedagógica, a
situação política, económica, social e, sobretudo, religiosa do
Império Romano e a repercussão que tinha no âmbito de Israel. Trabalha à
base das perguntas que faz para compreender em que mundo nasceu e se
desenvolveu o cristianismo, vencendo os lugares comuns da ignorância.
Como afectava a dominação romana a vida quotidiana de
Israel? Que impacto teve o principado de Augusto e o fim da República?
Como estava organizado o judaísmo? Que influências tiveram as religiões
que o rodeavam? Qual era a situação da mulher, dos diversos grupos
religiosos judaicos, as ânsias de salvação que se viviam em todo o
Mediterrâneo oriental, as relações entre judeus e pagãos? Etc..
Sem ter isto em conta, os textos do Novo
Testamento são ilegíveis. Nenhum tem a assinatura de Jesus de Nazaré. Não
é como escritor que Jesus se tornou conhecido e imprescindível. Não é o
único caso entre as grandes personalidades da História. Também não foi o
único caso de reformadores fracassados.
3. Jesus de Nazaré viveu e trabalhou na
Palestina do primeiro século. Acerca disto não há dúvidas. Mas ficar só
com aquilo que, pelo método histórico, se pode saber é ficar com quase
nada. Sabemos que viveu no quadro de um judaísmo plural e, dentro dele,
fez o seu caminho. Teve discípulos, foi seguido por multidões, suscitou
muitas controvérsias e acabou cruxificado. Mas porque não desapareceu a
sua memória, como a de muitos rebeldes e muitos milhares de cruxificados?
Sob o ponto de vista religioso um cruxificado, um
blasfemo, um possesso do demónio não era propriamente um protegido de
Deus. Contra todas as evidências passa a correr a ideia que Deus o
ressuscitou. Por outro lado, não se estava no fim do mundo, na
ressurreição universal.
Havia o sinal de uma nova convocatória. O estranho é
que os discípulos acabaram por dar crédito às mulheres, cuja opinião não
contava.
Os seus discípulos, como bons judeus, até podiam saber
a Bíblia de cor. Entregaram-se apaixonadamente a reler, a reinterpretar, a
reescrever tudo o que a Jesus dizia respeito, para mostrarem que ele era
verdadeiramente o Messias, o Cristo esperado. Leem e reinterpretam tudo,
mas da frente para trás. Ao ficar tudo tão bem acertado, até parece que
estava tudo mais que previsto.
Veremos qual era o método prodigioso fixado por Mateus,
Marcos, Lucas e João, sem falar de Paulo.
[1]
Antonio
Piñero, Año I, Israel Y su mundo cuando nació Jesús,
Laberinto, 2008
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COM QUEM COMEÇAR O NOVO ANO?
(I) |
Público 10JAN2016
1. Para mim, Jesus Cristo foi desde sempre, é e será o
ser sublime, supremo e ideal que a humanidade produziu. Enquanto Judeu, é
o único orgulho que sinto de ser da sua raça. A sua existência, as suas
palavras, o seu sacrifício e a sua fé deram ao mundo o mais nobre presente
jamais recebido: o do amor, do amor do próximo, do amor do pobre, a
compaixão, a humildade, enfim todos os sentimentos que enobrecem o ser
humano… é o Homem supremo. Estas são palavras do famoso músico Arthur
Rubinstein (1887-1982).
Santa
Tereza de Avila[1]
(1515-1582), com ascendência judaica, escreveu um dos mais belos sonetos
da literatura espanhola, nascidos da sua paixão por Jesus: (…)
Muéveme, enfin, tu amor de tal manera/ que aunque no
hubiera cielo, yo te amara,/ y aunque no hubiera infierno, te temiera
(…).
O Papa Francisco, no prefácio a uma Bíblia para jovens
de língua alemã, escreveu: “Gostaria de vos dizer uma coisa: hoje - ainda
mais do que no início da Igreja - os cristãos são perseguidos; qual é a
razão? São perseguidos porque carregam uma cruz e dão testemunho de
Cristo; são condenados porque possuem uma Bíblia. Com toda a evidência, a
Bíblia é um livro extremamente perigoso, tanto que nalguns países quem
possui uma Bíblia é tratado como se escondesse bombas no armário!”
Bergoglio recordou que Mahatma Gandhi, que não era
cristão, tinha afirmado: “Aos cristãos foi confiado um texto com a
quantidade de dinamite suficiente para fazer explodir em mil pedaços a
civilização inteira, para virar o mundo de cabeça para baixo e trazer a
paz a um planeta devastado pela guerra, mas tratam-no como se fosse uma
simples obra literária, nada mais”.
O Papa acrescenta aos jovens. Tendes nas mãos algo
divino: um livro de fogo, um livro no qual Deus fala. Por isso
recordai-vos: a Bíblia não é feita para ser posta na estante.
Seria uma estupidez fundamentalista pensar que basta
abrir a Bíblia, para entrar naquele universo cultural, que não é um ditado
divino. É a biblioteca de um povo, de épocas diferentes, muito diferentes,
com grande diversidade de géneros literários. É indissociável do estudo e
dos métodos de interpretação[2]
Conta-se nos Actos dos Apóstolos[3]
que um etíope, funcionário real, regressando de Jerusalém, sentado no seu
coche, lia o profeta Isaías. Filipe, discípulo de Cristo, perguntou-lhe:
“compreendes o que lês?” Como poderia, se não há quem mo explique?
2. O Novo Testamento exprime-se em 27 livros,
reconhecidos como canónicos. A grande maioria foi escrita em grego, entre
os anos 50 e 90 d.C. Cobre vários espaços geográficos e culturais, estilos
de vida e de pensamento espantosamente ricos e diversos. As diferenças
entre eles reflectem um impressionante pluralismo teológico nas primeiras
comunidades cristãs, a ponto de se ter dito que, nos escritos da época
apostólica, se pode reconhecer um “catolicismo primitivo”, “um
protestantismo primitivo” e uma “ortodoxia (oriental) primitiva”.
Esta lista canónica, ao reconhecer a validade da
diversidade de expressão teológica, demarca, ao mesmo tempo, os limites da
diversidade aceitável dentro da Igreja[4].
3. O assunto de todos os escritos do Novo
Testamento é, no entanto, Jesus de Nazaré, reconhecido como Cristo pelas
comunidades que, em seu nome, se foram formando, não sem muitos conflitos
de interpretação.
Ponto assente: Ele não escreveu nada,
nada mandou escrever nem deu o seu imprimatur a nenhum dos livros
ou cartas que, sobre ele, foram escritos. Não existe nenhuma biografia
encomendada por ele ou por ele autorizada. O cristianismo nasce no reino
da liberdade criadora!
Daqui nasceu a convicção de que acerca de Jesus de
Nazaré nada ou quase nada se pode saber de historicamente documentado.
Apesar disso, surgiram, sobretudo a partir do séc. XIX, crentes e
agnósticos interessados na descoberta do “Jesus histórico”.
Xavier Pikaza[5]
tentou apresentar o percurso sinuoso das diversas tentativas que, desde
Albert Schweitzer até Senén Vidal - passando por J.D. Crossan, Sanders ,
G. Theissen e J. P. Meier – procuraram desenhar um perfil histórico de
Jesus de Nazaré. Foi um esforço que ocupou muitos especialistas do séc. XX
e começos deste século. No meu entender, o pouco que
foi conseguido já é muito.
A cristologia, sem fundamento histórico, é vazia.
Apesar do enraizamento de Jesus na cultura judaica, muito plural, isso não
impediu um itinerário independente e original. Para os próprios judeus que
o seguiram, Jesus era algo de muito novo.
Foi morto, de forma planeada, pelos Sumos Sacerdotes do
Templo e pelas autoridades locais do império Romano, sob Pôncio Pilatos.
Que terá havido no comportamento de Jesus para que um derrotado seja a
base e o impulso de uma esperança invencível?
[1]
Soneto a Jesús Crucificado
[2] Comissão
Pontifícia Bíblica, A interpretação da Bíblia na Igreja,
1993
[4]
Julio Trebolle Barrera- A Bíblia Judaica e a Bíblia Cristã,
Vozes, Petropolis, 1999, 2ª ed. p 299
[5]
Quem foi Quem é Jesus Ctisto? Coor. por
Anselmo Borges, Gradiva, 2012, p 11-82
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