1. Quando tudo parece sem
remédio, surge o Papa Francisco a dar uma estranha solidez à
esperança, a virtude das situações difíceis. É normal que nem todos
vejam assim os seus gestos. Mesmo dentro da própria Igreja, existem
grupos, movimentos e personalidades que se opõem à sua orientação,
usando diversos métodos para neutralizar a sua influência. A prática
mais corrente é a da resistência passiva. Fazem de conta que as suas
iniciativas, convocatórias e tomadas de posição não têm nenhuma
importância. As pessoas com responsabilidades diocesanas e paroquiais
sabem que as rotinas bastam para barrar o caminho a propostas
desestabilizadoras.
Outro método frequente é a desqualificação
de Bergoglio. O que este argentino propõe de mais acertado já estava
dito pelos seus antecessores. Quando procura ser original, não passa
de um demagogo do terceiro mundo. A sua perspectiva social, condensada
em três T- trabalho, tecto (casa) e terra –,
apresentada no Vaticano, ao acolher os Movimentos Populares[¹],
como anseios e direitos sagrados de qualquer família, é um exemplo de
pregação irresponsável. O jesuíta, C. Theobald, mostrou, pelo
contrário, a originalidade e a pertinência do estilo concreto
do Papa Francisco, atento à existência social infinitamente diversa e
plural[²].
Enquanto ficava por aí, tinha de facto,
muitas passagens da doutrina social da Igreja a seu favor. Agora, tudo
se agravou. Em nome de ajustamentos pastorais, a Exortação A
Alegria do Amor, deu instrumentos àqueles que procuram destruir a
concepção católica da família.
Compreendo que o Prefeito da Congregação para
a Doutrina da Fé, o Cardeal Ludwig Müller, viva momentos atribulados.
Tinha revelado publicamente que se sentia investido da missão de
estruturar teologicamente o pontificado do Papa Francisco, pois este
não era um teólogo profissional. Não sei se por vaidade ou
megalomania, lutou até à última para desautorizar as posições que
acabaram por vingar na Amoris laetitia. Paradoxalmente, é este
documento que exige revisões no ensino da teologia moral, denunciando
a moral fria de escritório[³].
Terá ele a humildade suficiente para repensar a sua teologia algo
enfatuada?
2. O Movimento
Internacional Nós Somos Igreja reconhece que esta Exortação
Apostólica introduz uma nova época na ética sexual, na linha do
Concílio Vaticano II. Agora, são essencialmente as igrejas locais,
incluindo as ciências teológicas e todos os fiéis, que têm a obrigação
de desenvolver as linhas gerais, as ideias e as iniciativas básicas
definidas por Francisco. Quando afirma que nem toda a discussão
doutrinária, moral ou pastoral deve ser decidida com uma intervenção
do magistério (nº 3), o Papa Francisco devolve à Igreja a
liberdade de diálogo e de desenvolvimento da doutrina, que muitos
papas anteriores restringiram em excesso. Explicitamente, o Papa
também exige a reflexão dos pastores e teólogos, sobre as
ciências teológicas[4].
Bergoglio reparte as responsabilidades
pastorais, precisamente porque todos somos Igreja. Ele convoca, não
substitui, mas dá o seu contributo e, neste caso, incontornável. Fala
da alegria do amor com muita alegria e pouca solenidade. Sabe que hoje
muitos noivos escolhem para a celebração do casamento o hino de S.
Paulo[5]
à caridade. Como esta é confundida com uma esmola, passou a ser
traduzida por amor e o Papa embarcou nesta opção. As leituras na missa
têm tão pouca sorte, que a homilia ou as repete ou interpreta o que
ninguém ouviu. Como este pontífice tem muita experiência dessa
desgraça, resolveu comentar este hino, estrofe a estrofe. Confesso que
não conheço nada de mais adequado para os CPM[6]
e os retiros de casais.
3. O que será que permite
a este Papa tanta desenvoltura humana, pastoral e teológica ao
relacionar-se com as crianças, os idosos, os doentes, os sem-abrigo,
os refugiados, inscrevendo tudo em responsabilidades locais e globais?
Se não me engano, é devido ao amor que move o
seu pensamento, os seus passos e as suas mãos. Se fosse apenas um
conhecimento científico da realidade, este criava, automaticamente,
uma distância analítica, especulativa, como o daqueles que sabem tudo,
mas não mexem uma palha. A sua teologia é unitiva: é um conhecimento
que nasce da alegria do amor e alimenta a investigação contínua e
concreta. Não é daqueles que fazem um curso de teologia, ou até um
doutoramento, e ficam dispensados de pensar e investigar até ao fim da
vida. Como nada os surpreende, também não surpreendem ninguém.
Na apresentação do documento final dos
movimentos que se dedicaram a Escutar a Cidade[7],
tive a alegria de ouvir a teóloga Cátia Sofia
Tuna, cruzando experiência social e cultural, prática teológica e
espiritualidade, apontando caminhos a percorrer e metas a atingir,
para escutar sempre a voz de Deus, nas vozes do mundo.
in Público
24.04.2016