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Dada a complexidade e amplidão do fenómeno, é normal que o seminário
tenha convocado especialistas nas áreas da filosofia, da ética, da
teologia, da antropologia e da história. As religiões valem enquanto
expressões da vida profunda. A denúncia das suas imposturas e a
desconstrução das suas representações insensatas – de que Jesus
Cristo foi um mestre incomparável – não podem esquecer os seus
imensos recursos, na diversidade das suas formas, para configurar o
sentido da aventura humana. Como dizia José Régio, os que falam da
religião como alienação suprema – não podem compreender de quantas
alienações ela nos liberta. A esperança de que a própria morte é
trânsito misterioso para o grau mais evoluído da existência é
profundamente humanista.
2.
As lideranças que não assumem a historicidade das expressões e
organizações religiosas confundem a fidelidade com idolatrias
dogmáticas e não enxergam o anacronismo dos preceitos que não
respeitam os direitos humanos. As religiões vivem da comunhão dos
tempos, mas, segundo Jesus Cristo, o espírito do vinho novo pede
odres novos para não deitar tudo a perder.
Sem a clarividência e a divina coragem do Papa João XXIII- um velho
com sonhos - a Igreja Católica Romana não teria vivido a grande
revolução que nenhuma traição ou eclipse poderá apagar. As
investigações, colóquios, debates, conferências e publicações em
curso, sobre o papel do Vaticano II, vão ter frutos. John W.
O’Malley (What Happened at Vatican II) retraçou, de forma exemplar,
o que aconteceu, desde o seu anúncio, a 25 de Janeiro de 1959, até
à celebração da sua clausura, a 8 de Dezembro de 1965. Faz reviver,
passo a passo, os grandes debates conciliares, o trabalho das
comissões e as relações, por vezes difíceis, entre Paulo VI e a
Assembleia dos bispos. Mas ao destacar as diferentes correntes que
se afrontaram, evita a sua caricatura e as leituras simplistas de
uma oposição evidente e renhida, entre progressistas e
conservadores.
É evidente que já não estamos em 1959 nem no ano 2050, mas é
precisamente a ruptura e a comunhão dos tempos que exige perguntas
básicas. Que representou o concílio para as gerações que o viveram?
Que aconteceu para passar a ser ignorado ou silenciado durante
décadas? Que fazer agora para que as gerações actuais de católicos -
num mundo onde se alargam as desigualdades, cresce a pobreza e se
agrava a crise ambiental – assumam, com todos os seres humanos de
boa vontade, religiosos ou não, a reconfiguração de um presente que
escute as vozes do passado e se abra o futuro?
O puro actualismo é uma ficção. A história é uma caixa de
surpresas. Não temos o mundo com que sonhámos. Por outro lado, o
ritmo das mudanças, sobretudo a nível científico e técnico – com
repercussões em todas as áreas, mesmo na religiosa – é tão rápido
que, em muito pouco tempo, o que era solução aparece como problema.
3.
Dir-se-á que isto é uma cedência ao relativismo, uma indiferença aos
valores perenes. Talvez não. É uma cautela com os projectos
megalómanos que esquecem a historicidade da nossa condição humana e,
portanto, também da condição da Igreja, que ganhará com uma
espiritualidade do provisório. Se uns gostam de rezar, “assim como
era no princípio agora e sempre pelos séculos dos séculos”, outros
preferem a oração do “pão nosso de cada dia”, recomendada pelo
próprio Jesus.
Tomar a sério a inter-fecundidade do diálogo com ateus, agnósticos,
com outras configurações religiosas do Oriente e do Ocidente, com
outras igrejas cristãs é um imperativo do Concílio. O mistério de
Deus e do mundo é maior do que as querelas vãs em que nos perdemos.
A importância da família, - com as suas diferentes tradições e as
suas metamorfoses - deve estimular a Igreja Católica a repensar as
uniões de facto, o casamento civil, o divórcio e o re-casamento.
Todas essas situações podem ajudar a Igreja a descobrir mundos que
tende a ignorar e situações que precisam de evangelização.
A teologia dos ministérios ordenados – serviços da comunidade cristã
– precisa de ser repensada. Uma doutrina que impede as mulheres de
poderem ser chamadas a receber o sacramento da Ordem continua a
semear a desordem na Igreja. O documento conciliar Gaudium et Spes -
Alegria e Esperança - sobre a Igreja no mundo contemporâneo é, por
natureza, provisório. O seu espírito exige uma reencarnação
contínua. |