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Jornal PÚBLICO, Lisboa, 13 de Março de 2011 |
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1. Timothy Radcliffe – que foi Mestre Geral da Ordem Dominicana –, num livro que recebeu o Prémio Michael Ramsey, agora, traduzido em português (1), cita um sermão de Santo Agostinho (354-430) que parece dirigido a esta Quaresma de 2011. Dizeis todos: “os tempos estão perturbados, os tempos estão difíceis, são tempos desgraçados”. Nós diríamos: eram e são! Agostinho, porém, não recorre a bodes expiatórios para explicar os males que nos afligem: não são os outros e só os outros os verdadeiros culpados da nossa situação e não são eles os únicos a ter de mudar. É evidente que há coisas a mudar que não dependem de nós, mas sabemos que, se nós próprios não mudarmos a partir de dentro, se não nos convertermos, seremos nós mais um veneno na sociedade e na Igreja. Não basta uma mudança para alguns dias, uns repentes de generosidade. Diz, por isso, o santo de Hipona: Vivei uma vida cheia de bondade e mudareis os tempos. Não é este o discurso apropriado a quem gosta de ter sempre, com razão ou sem ela, alguma coisa de que se queixar. É por isso, aliás, que os meios de comunicação social, com a exposição permanente da desgraça e a colecção diária de lamentações, julgam manter e alargar a sua clientela. 2. Diz-se, com frequência, que a raiz da crise é a falta de ética. Não se pode dizer, no entanto, que haja falta de conversa, de livros e debates sobre ética. Pelo contrário, vivemos na sua banalização, não por excesso de virtude, mas precisamente, pela sua ausência. A ética é tanto mais evocada quanto menos é vivida. Quando começou a crise, a invocação da falta de ética tornou-se a forma de evitar a análise e a avaliação dos impulsos, do percurso e do rumo da nossa civilização. Não é saudável continuar a confundir a vida ética com o discurso trivial sobre ela. Uma outra forma de falar da falta de ética é dizer que já não há valores. Ter preferências é valorizar. Podemos valorizar bem ou mal, dar importância aquilo que, depois, descobrimos que não presta e desprezar o que, depois, descobrimos que era essencial. Por outro lado, quando não pesamos, cuidadosamente, os prós e os contras das nossas preferências, expomo-nos a não encontrar a boa medida para as nossas opções e decisões. Valores existem, mas o que vale para uns não vale para outros e nem sempre vale da mesma maneira. Ao ser livre, o ser humano não só pode escolher como tem de rectificar os seus juízos e tornar boa a sua vontade para encontrar um caminho verdadeiramente humano. Somos potencialmente bons e maus nos nossos comportamentos e nas nossas decisões. Somos seres não acabados que precisam de se robustecer no bem para ter energias para resistir ao mal. 3. A noção clássica de virtude dizia que ela torna bons os que a possuem e boas as suas acções. Nessa linha, uma existência guiada pela prática do bem deveria dar sabor e verdadeiro prazer à vida. Ora, quando se falava de virtude, dizia-se o contrário: o que dá prazer ou é pecado ou faz mal. O prestígio da ética transitou para a noção de dever. O imperativo ético de Kant, simplificado, pode traduzir-se assim: age de tal forma que o teu agir se possa tornar regra universal. O padre Albert Plé (1910-1988), um dominicano francês, fundador do “Supplément de la Vie Spirituelle” (Revue d’éthique et de théologie morale), escreveu um famoso livro, “Por dever ou por prazer? (2), concluindo: “Diz-me onde encontras – ou sonhas encontrar – o teu prazer de viver e dir-te-ei quem tu és”. O filósofo Comte-Sponville retomou o mesmo caminho com o “Pequeno Tratado das Grandes Virtudes” que, para ele, são muitas: polidez, fidelidade, prudência, temperança, coragem, justiça, generosidade, compaixão, misericórdia, gratidão, humildade, simplicidade, tolerância, pureza, doçura, boa-fé, humor e amor (3). Inscreveu-se numa tradição que remonta a Aristóteles. Leonardo Boff, que continua a ampliar as exigências e as dimensões da ética e da teologia da libertação, chegou à conclusão de que, para mudar o mundo, não basta o protesto e o desejo. Para participar na mudança, é preciso descobrir e equipar-se com as “Virtudes para outro Mundo possível” (4). Sem elas, tudo ficará na mesma, depois dos êxitos aparentes das grandes manifestações. Ao expor, no 3º Fórum Espiritual Mundial, o conteúdo dessa obra, começou por alguns lugares comuns. Nunca, como agora, o destino pede uma mudança de rumo. O planeta Terra é a nossa casa. Ele e nós estamos em risco. Precisamos de um novo olhar que rasgue o horizonte de uma esperança mais plena do que a da nossa actual cultura. Precisamos de uma ética que imponha novos relacionamentos com a natureza. Daí a importância do Fórum Espiritual Mundial que visa suscitar a espiritualidade e o respeito pela diversidade. O erro da humanidade é o etnocentrismo. Quando fomos criados, a Terra já estava pronta e há comportamentos sociais que dizimam o planeta. É preciso passar da idade infantil no que se refere à responsabilidade para com a Terra. Importa incorporar o que o budismo nos trouxe: a ética da compaixão com toda a natureza, connosco e com o próximo. Esta obra é um programa e um instrumento de trabalho. A Quaresma não é para repetir que vivemos em tempos desgraçados. É para curar as nossas raízes e acolher o gosto de fazer aos outros o que gostaríamos que os outros nos fizessem. |
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(1) Ser Cristão
para quê?, Paulinas, Lisboa, 2011. |
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