FREI BENTO DOMINGUES, OP

Não é preciso ser ridículo

 

 

 

1. Segundo L'Osservatore Romano (15.01.2011), João Paulo II será proclamado beato pelo seu sucessor Bento XVI, no próximo dia 1 de Maio. A promulgação do decreto sobre o milagre atribuído a Karol Wojtyla (1920-2005) – acto que conclui oficialmente o andamento da causa de beatificação – foi autorizada pelo próprio Papa Ratzinger no passado dia 14, na audiência ao cardeal Angelo Amato, prefeito da Congregação para as Causas dos Santos.

Jornal PÚBLICO, Lisboa, 23 de Janeiro de 2011

Para o referido jornal, a beatificação de João Paulo II é um acontecimento histórico sem precedentes. Seria preciso remontar ao coração da Idade Média para encontrar exemplos análogos, mas em contextos não comparáveis com a decisão de Bento XVI. Nos últimos dez séculos, nenhum Papa elevou às honras do altar o seu imediato predecessor. Com efeito, Pietro del Marrone (Celestino V) foi canonizado em 1313 – menos de vinte anos depois da morte – pelo seu terceiro sucessor. Mais de dois séculos antes, tinha sido imediatamente reconhecida a santidade de Leão IX e de Gregório VII, falecidos em 1054 e em 1085.

Voltou a sublinhar-se que, no centro de cada causa de beatificação e de canonização, está apenas a exemplaridade da vida ao serviço de Deus. Como disse Paulo VI – no anúncio da introdução das causas dos seus dois imediatos predecessores –, o culto da verdadeira santidade, isto é, a glória de Deus e a edificação da sua Igreja, é o que conta para além de qualquer outro motivo.

Uma freira francesa, Marie Simon-Pierre, que padecia de Parkinson, atribuiu a sua cura milagrosa ao Papa João Paulo II que, aliás, sofrera da mesma enfermidade. Os médicos e teólogos, consultados pela Congregação para as Causas dos Santos reunidos no mais estrito sigilo, consideraram que a cura foi "imediata e inexplicável". As narrativas dessa religiosa serão um bom alimento para a imaginação dos seus entrevistadores e, sobretudo, acerca das conversas que ela diz continuar a ter com João Paulo II.

Este anúncio foi, certamente, de alegria para muitos. Outros sublinharam a excessiva pressa na beatificação do Papa Wojtyla, pois, o seu pontificado, tão controverso, precisa de uma certa distância para que a sua exemplaridade, para a vida da Igreja, possa ser avaliada com serenidade.

2. As beatificações e canonizações são processos humanos. Não revestiram sempre a forma actual e os canonizados não são casos exclusivos de vida santa. Como dizia Bernanos, a única tristeza é não ser, verdadeiramente, santo. A garantia pedida aos milagres é tida por decisiva, embora o grande critério, como vimos, continue a ser a exemplaridade da vida. Pede-se ao Céu um sinal para mostrar que estão vivos e activos os que desapareceram da nossa vista. Quando, nos funerais, se pede a Deus que lhes dê o eterno descanso no reino da perpétua luz, não se pede a sua reforma ou o seu desinteresse pela sorte do mundo. Se Deus está vivo, se Jesus Cristo prometeu continuar connosco para sempre, se Nossa Senhora é considerada, na Igreja, o exemplo do acolhimento da Palavra de Deus no quotidiano, não diz que a santidade lhes está reservada. O Apocalipse (cap. 7) fala de uma multidão de todas as nações, tribos, povos e línguas que chegaram à plenitude da vida mesmo no mundo da grande tribulação.

Como alguém dizia, as pessoas beatificadas e canonizadas são, no plano religioso, embora noutra linguagem, aquelas que recebem as medalhas de bronze, de prata, de ouro ou o prémio Nobel da santidade, atribuídas pela hierarquia da Igreja. Seja como for, só podemos recorrer a símbolos e analogias para evocar a vida depois da morte.

3. Qualquer congregação religiosa que se preze procura desenvolver os processos que levarão os seus fundadores à canonização e deve haver rigor nesses processos. João Paulo II deu muita importância à Legião de Cristo que, segundo agora se apurou, o seu fundador, Marcial Maciel, era um perverso, embora Deus já lhe possa ter dado a volta. Não há, no entanto, forma de lhe atribuir uma vida exemplar.

É, precisamente, sobre a vida exemplar das pessoas que fundaram congregações religiosas que os continuadores devem estudar e divulgar com fervor. Já me parece de interesse duvidoso a azáfama em arranjar curas milagrosas para a beatificação e canonização. Li, muito recentemente, uma oração estranha. Começava assim: “Senhor Jesus, Tu és um Deus de ternura e compaixão. Curaste os que Te procuravam aflitos e recomendaste: Pedi e recebereis, batei e abrir-se-vos-á. Temos a certeza de que estás sempre atento aos que Te suplicam com fé e confiança”. Até aqui, tudo bem, mas continua: “Nós Te pedimos, por intercessão de (…) que nos concedas a graça da cura de (indicar o nome) para glória do Teu Nome”.

O sistema das cunhas mudou. Já não se procura um santo influente no Céu para obter uma graça divina. Pede-se a Deus a promoção de uma pessoa da respectiva família religiosa levando-a a fazer um milagre que convença um tribunal científico e teológico. É normal pedir socorro e agradecer, mas não é preciso ser ridículo.

Com beatificações ou sem elas, o Cristianismo considera o ser humano como um valor eterno e não, apenas, como um episódio da terra, na terra dissolvido por enterro ou cremação.