FREI BENTO DOMINGUES, OP

 

A quaresma e o riso

 

 

 

Jornal PÚBLICO, Lisboa, 20 de Março de 2011

    1. A crise mundial, a complicadíssima situação social e política do país, a turbulência no mundo árabe e a tragédia que se abateu sobre o Japão devem ser assumidas pelo espírito desta Quaresma. Em regime cristão, no entanto, está desaconselhada a exibição da virtude. Na Quarta-Feira de Cinzas, o Evangelho de S. Mateus diz muito claramente: “Tu, quando jejuares, perfuma a cabeça e lava o rosto para que os homens não percebam que jejuas, mas apenas o teu Pai que está presente no segredo” (Mt 6).

    Por outro lado, o imperativo divino, “sede santos, porque Eu, o Senhor, sou santo”, realiza-se em atitudes muito concretas, resumidas no mandamento: “amarás o teu próximo como a ti mesmo” (Lev 19). No Novo Testamento, tornar-se próximo é aproximar-se de quem precisa, só porque precisa, seja qual for a sua nacionalidade, a sua religião ou o seu ateísmo (Mt 25).

    Nietzsche acusava os cristãos de andarem sempre com cara de Sexta-Feira Santa. Para que a Igreja não se torne uma tristeza, tem de se lembrar que, segundo S. João, na revelação de Jesus Cristo, tudo é para que a nossa alegria seja completa, na transfiguração do quotidiano.

    Quem entendeu e viveu, como ninguém, o evangelho da alegria foi São Filipe Neri (1515-1595), o santo humorista, “o meu santo”, como lhe chamou o luterano Goethe, autor do “Fausto”, santo da devoção do recentemente beatificado cardeal Henry Newman.

    2. Pensava-se que a velha Florença já não tinha mais nada de que se pudesse admirar. Vira Dante compendiar o mundo, do Inferno ao Céu, na “Divina Comédia” e Maquiavel redigir o seu desencantado receituário para viciados em política. Fora palco da arrebatada pregação de Savonarola que acabou queimado em praça pública. Assistira ao esplendor e à derrota dos Medici. Vestira-se de esplendor com Miguel Ângelo e Leonardo Da Vinci. Teve santos, heróis e génios. Pensava conhecer tudo o que a arte, a sabedoria e o poder têm para oferecer aos seres humanos, mas faltava-lhe, ainda, experimentar algo que pode reavivar os corações envelhecidos: “o sorriso de Deus” que Filipe Neri descobrira no convento de S. Marcos (1).

    Ele nasceu num século conturbado, da Reforma Protestante e da Contra-Reforma, mas também de espantosos santos e muito diferentes: Teresa de Ávila, Pedro de Alcântara, João da Cruz, Camilo de Lelis, Inácio de Loyola, Francisco Xavier, Carlos Borromeu, Caetano de Thiene, Francisco de Sales, Thomas More, John Fisher e Pio V. Este incarnou a vontade férrea de aplicar o Concílio de Trento, enfrentando o turbilhão das fúrias que despertou e o pântano das resistências passivas. Em seis anos, realizou a reforma da cúria romana, publicou o primeiro Catecismo universal, dirigido aos párocos, o Missal dos fiéis e a Suma Teológica de S. Tomás. O seu grande defeito era a sua obsessiva seriedade. Não sabia rir, como dizia o embaixador de Veneza junto da Santa Sé.

    Com esse feitio, era natural que fosse incapaz de compreender o estilo alegre, brincalhão e soberanamente livre de Filipe Neri. Chegou a tomar a decisão de fechar o Oratório – essa tertúlia espiritual e cultural, esse grupinho de alegre santidade – que só a intervenção de S. Borromeu conseguiu impedir.

    3. Qual era o “pecado” de S. Filipe Neri? Brincar com tudo e com todos. Brincar com Deus, com os pobres e com os ricos, com Papas, príncipes e, sobretudo, com a cúria romana. Quando morreu Pio V, que o tinha perseguido de todas as maneiras, passou a usar um manto desse Papa, mas virado do avesso. Teve sorte com os sucessores desse pontífice, Gregório XIII e Clemente VIII, que não se cansavam com as suas piadas e partidas. Nunca sofreu de papolatria.

    Não queria ser padre, nem pregador, nem religioso com votos públicos ou privados. Queria ser de Deus e de toda a gente em santa liberdade. Não conseguia entrar nos métodos autoritários da Contra-Reforma ou Reforma Católica nem no estilo dos exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola que insistia para que ele entrasse na Companhia de Jesus. Com humor despeitado, comparava Filipe Neri a um sino: “Assim como um sino de paróquia, que chama todo mundo para a igreja e permanece no seu lugar, este homem apostólico faz os outros entrarem na vida religiosa e permanece de fora”.

    Abriu, de facto, o caminho a muitas vocações de jesuítas, dominicanos, teatinos, etc., mas quando foi ordenado padre e o seu Oratório autorizado, recomendava aos superiores: “se queres ser obedecido, dá poucas ordens”. Recusou-se, como padre, confessor e pregador, a seguir os modelos mais consagrados e, para disfarçar o seu fervor e devoção, até na missa, no confessionário e na pregação fazia rir. Sem humor, não sabia viver o amor de Deus e do próximo nem as suas devoções. Era a sua respiração humana e sobrenatural, tudo fazendo para que ninguém desse por isso.

    No momento em que, de novo, na Igreja, se procura voltar a um certo dogmatismo e a um pietismo, ora rançoso ora pomposo, importa redescobrir que o amor sem humor perde toda a graça, passa a uma obrigação, quando lhe pertence ser uma humilde jubilação da alma e um alívio das dores do mundo. 

 

1. Guilherme Sanches Ximenes, Filipe Neri. O sorriso de Deus, Quadrante, São Paulo, 1998

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