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Jornal PÚBLICO, Lisboa, 29 de maio de 2011 |
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1. Anselmo Borges referiu-se, com grande atenção, ao manifesto de 400 teólogos de fala alemã, residentes na Alemanha, na Suíça e na Áustria (144 professores de teologia católica), a que se foram juntando muitos outros, subscrevendo um “Memorandum”, no qual pedem reformas profundas na Igreja (cf. DN, 7.05.2011). Ao juntar todos esses nomes de língua alemã, talvez esperem que o documento venha a despertar a atenção de Bento XVI. No tempo do Card. Ratzinger, Perfeito da Congregação para a Doutrina da Fé, foi sistematicamente neutralizado o que havia de mais vivo na teologia europeia, na teologia da América Latina, da Ásia e da África. De pé, fora de qualquer suspeita, ficou apenas a sua teologia e a daqueles que com ela se identificam. Em várias expressões da Igreja, parece ter vingado a ideologia do pensamento único. Anselmo Borges observa que, na Alemanha, a teologia está nas Universidades públicas e o estatuto das faculdades de Teologia é o mesmo das outras faculdades, impondo-se o rigor científico e crítico, assim como o diálogo com os outros saberes como uma exigência natural. Exigência que continua sob a vigilância da “Instrução sobre a vocação eclesial do teólogo” (1990), obra do Card. Ratzinger. A teologia não é apenas um assunto universitário. É responsabilidade de todos os cristãos que devem estar prontos a dar razão da sua esperança – com brandura e respeito – como recomenda S. Pedro na Missa de hoje (1Pd 3, 15-16). 2. Rafael Aguirre editou a investigação de vários professores das Universidades de Salamanca, Deusto e Comillas para responder a uma pergunta básica: “como começou o cristianismo?” (1). Tentou dizer, numa entrevista, o sentido do grande empreendimento que coordenou, sem qualquer preocupação de o resumir. O cristianismo não caiu do céu nem é o resultado de qualquer decreto fundador, elaborado por Cristo. Surge de um processo conflituoso que vai, grosso modo, dos anos 30 aos finais do século II. Na fonte, está o impacto decisivo que Jesus produziu nos seus seguidores e que pôs em movimento uma série de grupos diversos que se vinculavam com ele, ainda que de modos diferentes. Irrompeu na Palestina, mas com os judeo-helenistas (e Paulo) tornou-se um movimento universal. A investigação mostra que o cristianismo das origens era bastante mais plural do que o cristianismo do nosso tempo. Neste contexto, usa-se a palavra ecclesia para designar o grupo daqueles que se dizem seguidores de Jesus e a palavra cristianismo refere-se mais à cultura que tem a sua inspiração nos valores evangélicos, penetrando no Império Romano, muito antes de contar com o apoio imperial. Jesus morre no ano 30/33 e o Édito de Constantino é só dos começos do século IV. O processo do cristianismo está, praticamente, concluído no século II, quanto aos seus elementos organizativos, às suas Escrituras e aos seus ritos próprios. É, pois, muito anterior ao apoio imperial. A ortodoxia surge, sobretudo, com os concílios ecuménicos. O primeiro foi o de Niceia (325) e esse, sim, já conta com o apoio de Constantino, mas as orientações fundamentais já estavam tomadas. Pergunta-se, com frequência: afinal, porque é que o cristianismo triunfou? A resposta mais directa seria a seguinte: num momento de crise da ideologia oficial, dispunha de comunidades socialmente heterogénias, culturalmente mestiças, que ofereciam identidade e ajuda material. Isto tudo junto representava uma certa novidade na história. Eram comunidades que, por um lado, desenvolveram, muito cedo, capacidade de diálogo com as elites culturais e, por outro, tinham um sistema sacramental que oferecia um clima de acolhimento, inclusive emocional, para a gente mais simples. 3. Donde virá, agora, tanto interesse pelo estudo das origens do cristianismo, sendo os seus paradigmas culturais tão diferentes dos nossos? É verdade que o paradigma cultural em que se expandiram as primeiras comunidades e aquele em que vivem os cristãos no nosso mundo globalizado é completamente diferente, mas nem por isso perderam capacidade de nos interpelar. No cristianismo das origens, as comunidades eram muito participativas, com grande capacidade de acolhimento e integração da diversidade. São o contrário do pensamento único. Existe, também, nos testemunhos desse começo, inspiração e possibilidades que nunca se desenvolveram. O impressionante protagonismo das mulheres, por exemplo, ficou quase inédito no cristianismo posterior. O Papa actual está, e ainda bem, muito preocupado com a cultura europeia, mas basta pensar nas culturas asiáticas para ver a que distância ainda dos encontramos. R. Aguirre observa que se continua a insistir demasiado na Igreja “mãe e mestra” e pouco na sua condição de irmã de toda a humanidade com a qual deve caminhar. Se a Igreja tem muito a dizer, também tem muito a aprender. Para reencontrar a sua proposta, tem de desenvolver uma nova capacidade de escuta. O diálogo não é uma táctica. É o espelho da nossa condição na sociedade e na Igreja. Hoje, perante as inumeráveis vítimas da crise do império universal da especulação financeira, que sugere o espírito de Cristo às Igrejas, a nível local e global, para descobrir os caminhos de uma nova cultura de solidariedade, agregando todas as pessoas de boa vontade?
(1) Así empezó el Cristianismo, Verbo Divino, 2010 |
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