FREI BENTO DOMINGUES, OP

 

 

Pátio dos gentios

Jornal PÚBLICO, Lisboa, 20 de Fevereiro de Janeiro de 2011

1. Há caminhos longos para chegar muito perto. É o caso do chamado diálogo entre crentes e não crentes. Paulo VI, em Abril de 1965, em pleno Vaticano II e no período de gestação da Constituição sobre A Igreja no mundo contemporâneo (GS), criou um Secretariado dedicado aos não crentes. Confiou-o ao Cardeal Franz König para o estudo do ateísmo, para investigar as suas causas e motivações profundas e, quando possível, iniciar, de forma leal, um diálogo com os próprios não crentes. O Cardeal Martini promoveu, em Milão, um diálogo aberto e público, na catedral, com figuras de relevo nos diversos campos do saber.

Em Dezembro de 2009, o Papa Bento XVI expressara o desejo de que a Igreja abrisse uma espécie de “Pátio dos Gentios”, um lugar “no qual os homens possam, de alguma forma, entrar em contacto com Deus, sem o conhecer e antes de terem encontrado o acesso ao seu mistério”.

No tempo de Jesus e dos apóstolos, o recinto que circundava o Templo de Jerusalém estava dividido em vários pátios que refletiam, em parte, a própria organização social da Palestina. O maior era o dos gentios. Estava separado do Templo e dos outros pátios por uma balaustrada com inscrições, proibindo a passagem para o interior, sob pena de morte. Cinco degraus acima, havia o pátio das mulheres e, ainda mais acima, havia o pátio de Israel ou dos homens. Deste, passava-se para o dos sacerdotes.

A metáfora do Papa inspirou a criação, no âmbito do Conselho Pontifício para a Cultura, presidido pelo Cardeal Gianfranco Ravasi, de uma nova estrutura permanente destinada a incentivar o intercâmbio e o encontro entre crentes e não crentes. O lançamento oficial desta nova estrutura, designada, precisamente, Pátio dos Gentios, está prevista para os dias 24 e 25 de Março, em Paris. Sob o tema genérico "Religião, luz e razão", este evento vai desenvolver-se mediante um conjunto de debates, na sede da UNESCO, na Sorbonne, no Institut de France e no Collège des Bernardins. No segundo dia à noite, será organizada uma festa aberta a todos, sobretudo aos jovens, no átrio da Catedral de Notre Dame.

2. Manuel Pinto, da Universidade do Minho, espera desta instituição resultados promissores, mesmo que não imediatamente visíveis. No entanto, para que as boas intenções não fiquem minadas, logo à partida, adverte que as palavras valem o que valem. Algumas carregam um peso histórico muito forte e gentio é uma delas. Define-se pela negativa: gentios eram os que não podiam entrar no templo, pelo menos em certas partes reservadas aos judeus. Pergunta: porque não dizer antes “o Pátio dos Encontros, o pátio dos desconhecidos que querem encontrar-se e conhecer-se?” Quando se organiza este tipo de iniciativas, talvez haja a esperança secreta ou confessada de que as “ovelhas tresmalhadas” encontrem ou regressem ao redil. Não é o melhor caminho para o conhecimento mútuo e para um verdadeiro diálogo. Denota mais vontade de ser conhecido do que conhecer (Cf.: http://religionline.blogspot.com/2011/01/sobre-o-patio-dos-gentios.html).

3. A expressão “Pátio dos Gentios” é ambígua. Pode dar a ideia de que o mundo está dividido entre os que já encontraram Deus e os que procuram esse encontro. Seria uma visão muito simplista. Alguma razão tinha Fernando Pessoa ao dizer: “Em qualquer espírito, que não seja disforme, existe crença em Deus. Em qualquer espírito, que não seja disforme, não existe crença em um Deus definido”. Vem no Livro do Desassossego. E o desassossego é o próprio estatuto de todos os seres humanos em relação ao sentido e ao fundamento da vida. A experiência do místico é a do Mistério inabarcável, não a posse de um ente circunscrito por uma definição. Quando o mestre Eckhart pede para que Deus o livre de deus, reza para não sossegar em nenhum ídolo, mesmo no ídolo da ideia de Deus, como se Deus coubesse numa ideia, num conceito.

Dir-se-á que a nota dominante do nosso mundo não é o desassossego, é a indiferença: como não podemos conhecer o sentido da vida de forma científica, evitemos a própria questão e tentemos viver em paz sem questões metafísicas ou espirituais, religiosas ou místicas. Vivamos ao rés da terra que nos há-de comer e as preocupações do dia-a-dia, minado pela crise, bastam e sobram.

Parecendo que não, essa conversa é abstracta. Vivemos no pátio de toda a gente, de crentes, de não crentes, de místicos, de ateus e de agnósticos, de religiosos e irreligiosos. É neste mundo concreto que os cristãos devem estar prontos a dar razão da sua esperança, da sua experiência mística e a escutar as experiências religiosas ou ateias dos outros. A vontade de criar “pátios de encontro”, onde as pessoas de diferentes correntes ideológicas, políticas, culturais ou religiosas procuram escutar-se e interpelar-se mutuamente, responde a uma necessidade urgente, à qual importa dar configurações imaginativas. Aliás, mesmo a nível da Igreja, a celebração dos ritos de passagem – baptismos, casamentos e funerais – deixaram de ser espaços e tempos reservados aos crentes. Por razões várias, são “pátios” de crentes e gentios. Em vez de pensarmos só em estruturas ou instituições sofisticadas de encontros solenes, não seria de estudar e praticar as imensas virtualidades destas ocasiões tão frequentes?