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Jornal PÚBLICO, Lisboa, 22 de maio de 2011 |
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A estratégia dos Actos dos Apóstolos é, no entanto, bastante diferente. Mostra que não vale a pena fixar-se num passado exemplar nem remeter-se para um fim apocalíptico. Para usar uns versos já muito saturados, “o caminho faz-se, caminhado”. Se no primeiro volume – no Evangelho segundo S. Lucas – o caminho de Jesus parece terminar em Jerusalém, no segundo, é de Jerusalém que vai partir a grande aventura até Roma, capital do Império. Depois da morte de Cristo, seguiu-se um período de indecisão quanto ao rumo a seguir pelos discípulos de Jesus. Fica-se mesmo com a ideia que, ainda depois da experiência misteriosa de encontro com o Ressuscitado, os discípulos continuavam com a antiga esperança messiânica: “Senhor, será agora que ireis restaurar a realeza em Israel?” (Act 1). Com o acontecimento do Pentecostes, as primeiras indecisões são vencidas e o Espírito de Jesus fala na língua de todos os povos (Act 2). Pedro, depois de interpretar o sentido dos acontecimentos com uma eloquência fundadora, viu a primeira comunidade crescer de forma espectacular, pedindo-lhe orientações rápidas para o caminho a seguir. 2. Embora as comunidades em crescimento começassem por ser todas judias e aparentassem um fantástico comportamento de partilha (Act 4, 32-35), o próprio seguimento do texto deixa perceber que a unidade não era, afinal, nem tão forte nem tão generosa como se dizia. Havia partidos. É, precisamente, essa a questão deste Domingo: “Naqueles dias, aumentando o número dos discípulos, os helenistas começaram a murmurar contra os hebreus, porque no serviço diário não se fazia caso das suas viúvas. Então os Doze convocaram a assembleia dos discípulos e disseram: Não convém que deixemos de pregar a palavra de Deus, para servirmos às mesas. Escolhei entre vós, irmãos, sete homens de boa reputação, cheios do Espírito Santo e de sabedoria, para lhes confiarmos esse cargo. Quanto a nós, vamos dedicar-nos totalmente à oração e ao ministério da palavra. A proposta agradou a toda a assembleia; escolheram Estêvão, homem cheio de fé e do Espírito Santo, Filipe, Prócoro, Nicanor, Timão, Parmenas e Nicolau, prosélito de Antioquia. Apresentaram-nos aos Apóstolos, e estes oraram e impuseram as mãos sobre eles. A palavra de Deus ia-se divulgando cada vez mais; o número dos discípulos aumentava consideravelmente em Jerusalém e obedecia à fé também grande número de sacerdotes” (Act 6). O judaísmo do tempo de Jesus e dos começos judaicos do movimento cristão ia da Península Ibérica à Mesopotâmia e tinha várias tendências e partidos. Aqui, fala-se, no interior do movimento cristão de marca judaica, dos hebreus – judeus sem contaminação cultural externa – e dos helenistas, judeus de língua grega, marcados pela cultura helénica e sem grande consideração pelos costumes judaicos e pelo Templo. A situação é cómica e vai ser uma constante nos Actos dos Apóstolos. A incipiente instituição eclesial – simbolicamente os Doze – pensa que fez a boa opção e até de forma democrática. Os escolhidos para tratar das viúvas esquecidas, não se diz que as esqueceram, mas vão mostrar que o Espírito Santo não se sentiu atado por essas decisões: os serventes das mesas tornam-se pregadores do Evangelho e começam uma descolagem do judaísmo ortodoxo. Estêvão, o mais ousado, é apedrejado até à morte e reage aos perseguidores como Cristo na cruz. A seguir, no capítulo oitavo, diz-se que se desencadeou violenta perseguição contra a Igreja de Jerusalém. De facto, só a tendência dos helenistas foi perseguida e dispersa, abrindo o caminho para os não judeus. Paulo, que aprovava a repressão e tornando-se ele próprio perseguidor, vai sofrer um abalo que fez dele o grande protagonista do universalismo cristão, no qual, não deverá haver separação entre judeu e grego, entre escravo e livre e entre homem e mulher (Gal 3). 3. A grande habilidade do livro dos Actos dos Apóstolos consiste em assumir uma atitude dialogante, conciliadora, sem negar as divergências, as oposições e os partidos. E não só. No espaço geográfico e humano que vai de Jerusalém até Roma, passando pela Samaria e Judeia, pela Fenícia, Chipre e Síria, pela Ásia Menor e Grécia, vai-se construindo uma história que não termina quando se fecha o livro. É uma história que continua sem fim à vista e sem nostalgia. Há dias, numa entrevista, Jacques Attali observou que “os preços dos produtos para os ricos baixam, enquanto os preços para os pobres aumentam. É mais caro ser pobre do que ser rico”. Perante isto, as comunidades cristãs, sejam quais forem as suas tendências partidárias, para serem fiéis à dinâmica dos Actos dos Apóstolos, não podem evitar a pergunta: que fazer, para acabar com este escândalo? |
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