FREI BENTO DOMINGUES, OP

Memória para o futuro

 

1. Há 50 anos foi convocado o Concílio Vaticano II. Em Portugal, não se tem notado qualquer interesse por um dos acontecimentos mais relevantes da segunda metade do século XX e, com o qual, a Igreja do século XXI não pode deixar de se confrontar. O Movimento Internacional “Nós Somos Igreja” está a procurar romper este silêncio. No passado dia 2 de Abril, organizou um Encontro, no Convento de S. Domingos, para responder à pergunta, “O Concílio Vaticano II – onde está?”, lançando dois painéis: “Memórias e Vivências” e “A Igreja e o Futuro”. Foi um êxito assegurado pela qualidade das intervenções.

Jornal PÚBLICO, Lisboa, 10 de Abril de 2011

Hoje, interessa-me ir à fonte de onde tudo jorrou de forma inesperada. João XXIII, baptizado com o nome de Ângelo Giuseppe Roncalli, nasceu em Sotto il Monte a 25 de Novembro de 1881. Morreu a 3 de Junho de 1963.

O poeta Miguel Torga escreveu, no seu Diário, nesse mesmo dia: “Morreu o Papa. Mas um Papa singular, que usou o nome dignitário de João XXIII e se manteve fiel ao anódino de Ângelo Roncalli, cujo rosto se via primeiro do que o resplendor da tiara, por quem neste momento estão de luto os crentes e os ateus do mundo inteiro. Um Papa que apontava para o céu e mostrava a terra, que falava de Deus a pensar no Homem, que carregava a cruz da infalibilidade com a bonomia dum céptico, que semeava na alma dos próprios laicos o trigo da santidade, que abençoou todas as revoluções justas da História, cheio de saber que as injustas não são revoluções, mas contra-revoluções… Bom, daquela bondade que o instinto colectivo adivinha e nenhum artifício imita. Antes que nas suas palavras brilhasse a inteligência que continham, reluzia nelas a sinceridade que as ditava. Os impulsos afectivos saíam-lhe do coração tão espontâneos e certeiros, tão justos e oportunos, tão puros e amplos, que dá vontade de escrever que ele foi o amor ecuménico dos Evangelhos ao natural”.

Tinha 76 anos quando foi eleito Papa, mais precisamente, no dia 28 de Outubro de 1958. Três meses depois (a 25 de Janeiro de 1959), ao concluir a Semana de Oração pela Unidade dos Cristãos, anunciou, com surpresa geral, a decisão de convocar um novo Concílio. Amadureceu sozinho esta decisão, comunicada apenas alguns dias antes ao seu mais abalizado colaborador, o card. Tardini, pró-secretário de Estado. Dirá, mais tarde, que os cardeais haviam recebido o anúncio, “não com aprovação e parabéns”, mas com “um impressionante e devoto silêncio”.

Nessa altura, como observou o grande historiador, G. Alberigo, respirava-se o ar sufocante da “guerra-fria” e todos viram, no anúncio do Papa João XXIII, um “sinal” – ou seja, não só um sintoma, mas também uma poderosa causa – de viragem na situação mundial que levava a pensar que era possível sair da imóvel e ácida contraposição dos blocos e recomeçar a projectar, com confiança, o futuro.

2. De 1959 a 1960, o arguto e bem humorado Roncalli, embora confiasse muito no Espírito Santo, vacinou-se contra as manobras vaticanas que procuravam impedir a liberdade conciliar. Por isso, contrariamente ao que ocorrera com o Vaticano I e com os projectos dos seus predecessores, escolheu o caminho da difusão pública e não o do segredo. Tornou muito claro que não se tratava de concluir o Vaticano I, suspenso em 1870, mas de propor um novo concílio, com novos objectivos, um acontecimento pastoral de toda a Igreja em processo de transição de uma época para outra: seria o Vaticano II, uma verdadeira revolução na Igreja, como lhe chamará Yves Congar.

A fase preparatória durou dois anos. Convocado no Natal de 1961, a abertura solene foi celebrada a 11 de Outubro de 1962. No cenário da Basílica de S. Pedro, com milhares de pessoas, entre padres conciliares, peritos e convidados, João XXIII fez uma arrojada alocução inaugural. A sua atitude, perante a sociedade e o futuro, era de acolhimento, não de condenação. O importante seria discernir os sinais dos tempos, superando as insinuações de almas que, embora ardentes de zelo, careciam do senso de discernimento e da boa medida: “só vêem, nos tempos modernos, prevaricação e ruína, o que os leva a dizer que a nossa época é a pior, comparada com os tempos passados”. O Papa declarou que se sentia na obrigação de “discordar desses profetas da desgraça, que anunciam sempre eventos infelizes como se fosse eminente o fim do mundo”.

3. Enquanto viveu, garantiu plena liberdade aos padres conciliares, o que já não acontecerá, na mesma medida, com Paulo VI. Ainda teve tempo para publicar a Encíclica Pacem in terris que comoveu o mundo inteiro e que constitui o seu verdadeiro testamento, mas já não viu a conclusão do Concílio em 1965.

Ainda não é, nesta crónica, que poderei tentar dizer o que representou, para mim, esse Concílio que tive a graça de acompanhar e seguir de perto, em Roma, em 1963/64. Também não direi, hoje, o que foi a participação do Episcopado português nesse acontecimento e as dificuldades do seu acolhimento entre nós: antes, durante e depois de 1965. Espero poder realizar esse desejo ao longo deste ano.

A situação do mundo, das religiões e das Igrejas Cristãs, em que se desenvolveu o Vaticano II, mudou e mudou muito. Precisamos de retomar, neste novo contexto, a intuição, a sagacidade e o método de João XXIII.

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