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Jornal PÚBLICO, Lisboa, 8 de maio de 2011 |
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Não pretendo dizer que é só na liturgia, nem sequer em primeiro lugar na liturgia, que acontece, hoje, o encontro com Cristo. É o que, aliás, nos diz a estranha viagem dos “Discípulos de Emaús” (Lc 24, 12-35) lida, hoje, na Missa e que apresenta as peças essenciais da identidade cristã. Alguma exegese feminista chegou à conclusão de que não se trata de dois discípulos, mas de um casal. Há razões e dificuldades para essa identificação, embora, nesta Páscoa, me tenham enviado, por e-mail, uma bela imagem que figura essa interpretação. No entanto, estar a favor ou contra esse ponto de vista não é decisivo para a inteligência desta narrativa pascal. Começa de forma enigmática: depois da crucifixão, os discípulos regressavam a casa, cabisbaixos, comentando o que tinha acontecido em Jerusalém. Entretanto, alguém começou a caminhar com eles, interrogando-os sobre a conversa que os desanimava. Pararam com ar muito triste e um deles, o Cléopas, observou espantado: “tu és o único habitante de Jerusalém a ignorar o que lá se passou nestes dias?” A situação torna-se cómica: passam a explicar, àquele forasteiro distraído que se lhes agregou, o que aconteceu a “Jesus de Nazaré, profeta poderoso em obras e palavras, diante de Deus e de todo o povo; e como os príncipes dos sacerdotes e os chefes o entregaram para ser condenado à morte e crucificado. Nós esperávamos que fosse ele quem havia de libertar Israel. Mas, afinal, é já o terceiro dia depois que isto aconteceu. É verdade que algumas mulheres do nosso grupo nos sobressaltaram: foram de madrugada ao sepulcro, não encontraram o corpo de Jesus e vieram dizer que lhes tinham aparecido uns anjos a anunciar que ele estava vivo. Alguns dos nossos foram ao sepulcro e encontraram tudo como as mulheres tinham dito, mas a ele não o viram”. O narrador revela que o clandestino – cuja ignorância e distracção os discípulos invectivaram – era, afinal, o próprio Jesus que se meteu no caminho deles. É o que nos acontece a todos, na vida quotidiana. Muitas vezes, sobretudo nos momentos de doença, sofrimento, abandono e solidão, perguntamos: mas onde é que está Deus? Esta passagem do Evangelho de S. Lucas serve para nos dizer que o Emanuel não está connosco só nos locais de oração, mas, em primeiro lugar, no quotidiano das nossas ocupações e preocupações, tenhamos ou não consciência disso. 2. A narrativa diz que o clandestino não se deu por achado, mostrando que eram os discípulos que não tinham entendido e continuavam a não entender o que lhes estava a acontecer: “Homens sem inteligência e lentos de espírito para acreditar em tudo o que os profetas anunciaram! Não tinha o Messias de sofrer tudo isso para entrar na sua glória? Depois, começando por Moisés e passando pelos Profetas, explicou-lhes em todas as Escrituras o que Lhe dizia respeito”. Qual é a importância do conhecimento bíblico? Hoje, diríamos, qual é a importância da investigação do sentido da história humana? Faz parte da existência cristã o confronto entre o conhecimento do Jesus da história e do Cristo da fé com os sinais do nosso tempo. A narrativa não ficou por aí: “ao chegarem perto da povoação para onde iam, Jesus fez menção de ir mais adiante. Mas eles convenceram-no a ficar, dizendo: Ficai connosco, porque o dia está a terminar e vem caindo a noite”. A terceira componente da existência cristã é a hospitalidade gratuita, dada a quem a não pede, mas que dela precisa: “Jesus entrou e ficou com eles. Quando Se pôs à mesa, tomou o pão, recitou a bênção, partiu-o e entregou-lho. Nesse momento abriram-se-lhes os olhos e reconheceram-no. Mas Ele ficou invisível. Disseram então um para o outro: Não ardia cá dentro o nosso coração, quando Ele nos falava pelo caminho e nos explicava as Escrituras?” Para que serve, então, a Missa? Para fazer as boas correlações entre o quotidiano, o estudo, a hospitalidade e a partilha. É o tempo do reconhecimento do visível e do invisível. Nos nossos caminhos de todos os dias, podemos caminhar com o mesmo Cristo que se dá como pão e vinho na celebração da Eucaristia sem o vermos fisicamente. Já nos referimos, em textos anteriores, que o teste feito à autenticidade da fé cristã é a partilha dos bens com os necessitados. Não foi assunto só das primeiras gerações. São Justino Mártir (100-165), ao descrever o desenrolar da Eucaristia, termina assim: “os que possuíam bens em abundância dão livremente o que lhes parece bem. O que se recolhe é posto à disposição daquele que preside. Este socorre os órfãos, as viúvas e os que, por motivo de doença ou qualquer outra razão, se encontram em necessidade, assim como os encarcerados e os hóspedes que chegam de viagem; numa palavra, ele toma sobre si o encargo de todos os necessitados”. Sempre e sobretudo neste tempo de crise, será, assim, tão difícil saber o que implica ir à Missa, também no campo social? |
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