Por outro lado, quando
ouço dizer, “eu não quero ser enterrado”, ou “deixarei no meu testamento
que desejo ser cremado”, parecem-me locuções carregadas de equívocos.
Quem vira as costas a essas preocupações porque acredita na
reencarnação, não diz se é para expiar pecados da vida passada ou para
tentar uma nova oportunidade.
A linguagem depende do seu uso e contexto. Quando não é unívoca, está
exposta à ambiguidade. É, por vezes, traiçoeira e paradoxal. Ninguém, no
seu bom juízo, diria, com realismo, que foi enterrar ou cremar os seus
pais, irmãos, filhos, etc. Se isto fosse verdade, a pessoa que tal
fizesse ou ia para a cadeia ou para o manicómio. No entanto, é o que,
correntemente, ouvimos dizer. Os que se empenham em jazigos de família
dão a ideia de que acreditam que vão ficar ali, juntos, depois da morte.
Dado o ridículo piedoso que se aloja nesta linguagem, talvez não fosse
pior falar, apenas, de “restos mortais”. A personalidade original de
cada um não deveria ser confundida com a sorte de um cadáver.
Nas exéquias e nas evocações de figuras ilustres, diz-se, com muita
eloquência, que aquela pessoa morreu, mas ficou a sua obra imortal. A
obra torna-se, assim, mais importante do que o sujeito que a criou. Quem
nasceu “sem unhas nem viola” e quem não deixou descendência ou um
património notável é como se não tivesse existido. A esperança de se
viver, enquanto houver alguém que nos recorde, é de um futuro muito
limitado.
Quem abrir um dicionário do Novo Testamento na entrada “ressurreição” –
por exemplo, o de X. Léon-Dufour – obtém uma resposta que não vai muito
longe: “É a principal imagem pela qual judeus e cristãos dizem o que se
tornará o ser humano depois da morte. Não é um simples retorno à vida
terrestre (como aconteceu com Lázaro), mas o acesso à vida plena e
definitiva”.
O ser humano é um feixe de relações. É feliz quando conta para os olhos
de alguém. A morte parece quebrar todos os laços e deixar, apenas, um
candidato a estrume. Daí, a esperança louca de acreditar que, para lá do
abismo, alguém chama por nós. A fé cristã é uma recusa do niilismo. Não
é um manual de informação do que se passa depois da morte. Nasce da
confiança de que o amor que Deus nos tem é criativo. É n’Ele que
vivemos, nos movemos e existimos. O resto virá por acréscimo se
tentarmos tirar os outros da tristeza.
2. Hoje, dizemos que é dia de Páscoa, primeiro dia da semana. Aliás, há
tantas celebrações da Páscoa cristã quantos os Domingos do ano. Porquê
este destaque? Por uma razão muito simples: ou Jesus e o seu projecto
fracassaram redondamente e só há razões para o esquecer, ou celebramos a
vitória mais importante da condição humana.
Na cultura tradicional estava escrito: “maldito todo aquele que é
suspenso no madeiro” (Dt 21,23). O modo como Jesus foi morto –
crucificado – não podia deixar de levar os discípulos ao desespero e
abandono. Diante do facto empírico da crucifixão de Jesus, ficava
provado que ele tinha andado a enganar o povo porque, se fosse o enviado
de Deus, o messias, o libertador verdadeiro, nunca poderia ter morrido
assim. Se assim morreu, para ele nenhuma ressurreição era possível.
É, aqui, que as narrativas do Processo de Jesus vêm em nosso auxílio
para não nos enganarmos com expressões suicidas, como a seguinte: “ele
entregou-se voluntariamente à morte”, para expiar o pecado como ofensa
infinita a Deus.
É verdade que Jesus podia ter fugido ou traído a sua missão e fazer o
jogo da opressão económica, política e religiosa, mas nunca se poderá
dizer que ele foi morto porque quis. Também não morreu de doença, de
velhice ou de acidente. Foi morto porque recusou abandonar o caminho da
libertação dos excluídos da vida. Só nesse sentido é legítimo dizer que
“se entregou voluntariamente à morte”.
3. Com o que foi dito, não tocámos no essencial das narrativas da
crucifixão de Jesus. O coração dessas narrativas vem na expressão
apresentada por S. Lucas: “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que
fazem”. No momento em que os seus inimigos o excluem da vida, do mundo –
só lhe dão passado odioso – ele oferece-lhes o perdão, um futuro, o
paraíso. Quando Jesus está mergulhado no abandono de tudo e de todos –
“meu Deus, meu Deus porque me abandonaste?” – na noite absoluta,
entrega-se ao supremo mistério: “nas tuas mãos entrego o meu espírito”.
Segundo os Actos dos Apóstolos, Pedro convertido, num improviso
inflamado, tem esta confissão espantosa: aquele que vós crucificastes,
Deus o ressuscitou e nem era possível que fosse retido no poder da morte
porque tudo, nele, era respiração da vida.
Em Portugal e não só, todas as notícias da Quaresma foram motivadas
pelos efeitos do capitalismo selvagem, especulativo, sem regras,
abrigado nos paraísos fiscais, mergulhando os pobres no desespero.
Perante o império do dinheiro, da corrupção e da imprevidência que
semeiam a morte, a mensagem da Páscoa, deste ano, deve servir para
convocar a energia de toda a gente de boa vontade para que não haja
indigentes entre nós (Act 4, 34). Esta seria uma Santa Páscoa! |