FREI BENTO DOMINGUES, OP

 

Carta de Einstein a uma criança

 

Jornal PÚBLICO, Lisboa, 26 de junho de 2011

1. Ao preparar uma intervenção para o Painel Ciência/Filosofia/Teologia: Que diálogo?, realizado na Covilhã, deparei com uma carta de Einstein (1879-1955), referida por Helen Dukas, a uma criança que lhe perguntara se os cientistas também rezavam. Já não me lembrava desse texto que passo a transcrever: “Respondo à tua pergunta do modo mais simples. Esta é a minha resposta. A pesquisa científica baseia-se sobre a ideia de que cada coisa que acontece é regulada pelas leis da natureza e isto vale, também, para as acções das pessoas. Por esta razão, um cientista será dificilmente inclinado a crer que um evento possa ser influenciado pela oração, por exemplo, por uma aspiração endereçada a um Ser supra-natural. Todavia, deve admitir-se que o nosso actual conhecimento destas leis é, apenas, imperfeito e fragmentário, assim sendo, realmente, a crença na existência de leis fundamentais e omnicompreensivas na natureza permanece, ela própria, como uma espécie de fé. Mas esta última é largamente justificada pelo sucesso da investigação científica. No entanto, de um outro ponto de vista, quem quer que esteja seriamente empenhado na pesquisa científica convence-se de que há muito espírito que se manifesta nas leis do Universo. Um espírito muito superior ao do homem, um espírito perante o qual, com as nossas modestas possibilidades, apenas podemos experimentar um sentido de humildade. Deste modo, a investigação científica conduz a um sentimento religioso de tipo especial que é, na verdade, bastante diferente da religiosidade de alguém mais ingénuo”.

As atitudes e declarações de Einstein perante a religião e as religiões, perante a afirmação ou a negação de Deus, já foram objecto de muitos estudos que não vou discutir aqui.

Nunca aceitou que lhe chamassem ateu. Se, umas vezes, confessava que o seu Deus era o de Espinosa, outras, mostrava a diferença entre eles. As expressões, “Deus não joga aos dados”, “não põe as suas coisas em praça pública”, “é subtil, mas não é malicioso”, serviam para afastar concepções antropomórficas, uma espécie, não confessada, de “teologia negativa”.

Nada há, na carta de Einstein, da arrogância do “cientismo”, dessa convicção de que a ciência acabará por explicar tudo e eliminará qualquer atitude religiosa. O “Universo inundado de inteligência” é demasiado vasto e complexo para ser abordado só pela investigação científica. Einstein não conhecia, apenas, a linguagem da ciência, era também um intérprete da linguagem de Mozart.

Segundo Novallis, a oração é na religião o que o pensamento é na filosofia. Não é uma ingeniudade. É a atitude humilde de quem acolhe e agradece, de quem confessa que não é a origem de todo o bem. Rezar é sair do egocentrismo e manter-se na luz do amor: “diz-me como rezas e dir-te-ei quem és”.

2. Importa, como diz o conhecido biólogo, Francisco J. Ayala, não confundir os caminhos da ciência e da religião: “a ciência procura descobrir e explicar os processos da natureza: o movimento dos planetas, a composição da matéria e do espaço, a origem e a função dos organismos. A religião trata do significado e propósito do universo e da vida, das relações apropriadas entre os humanos e o seu criador, dos valores morais que inspiram e guiam a vida humana. A ciência não tem nada a dizer sobre essas matérias, nem é assunto da religião oferecer explicações científicas para os fenómenos naturais. (…) O Deus da revelação e da fé cristã é um Deus de amor, misericórdia e sabedoria”.

Para este biólogo, “a evolução e a fé religiosa não são incompatíveis. Os crentes podem ver a presença de Deus no poder criativo do processo de selecção natural de Darwin”.

3. Sendo assim, valerá a pena perguntar: Ciência/Filosofia/Teologia: Que diálogo? Já existe uma vasta bibliografia sobre essa questão. Muitos preconceitos e confusões podem ser desfeitas no confronto de praticantes destas diferentes disciplinas. Estamos num mundo marcado pelas ciências sem que as interrogações filosóficas tenham perdido toda a pertinência e sem que a teologia possa ser eliminada do interior da experiência religiosa. A dificuldade desse confronto é a abstracção, pois, a ciência, a filosofia e a teologia conjugam-se no plural, o que não é indiferente para um diálogo. Por outro lado, a selecção destas três formas de conhecimento deixa de fora o mundo da vida, das expressões simbólicas, da estética e da ética, intrínseco à religião e não só.

Se não desejamos que uma sociedade viva polarizada, apenas, pelo confronto político-partidário, é importante desenvolver encontros e debates acerca da maneira como cientistas,  filósofos, teólogos, artistas são configurados, não só pelas suas especialidades, mas também pelas especialidades dos outros.

Ao reconhecerem a aliança entre a transcendência de Deus e a dignidade humana, os teólogos marcados pelas diferentes linguagens das ciências, da beleza e da ética, não poderão consentir na idolatria dos poderes da economia, da finança, da política, da religião, da técnica. Aliás, a experiência cristã situa-se no pressuposto da abertura do céu à terra, da terra ao céu e dos grupos humanos entre si, a nível local e global. Foi esta a experiência espiritual de Jesus Cristo e da Igreja do Pentecostes. Esta é, também, a nossa tarefa.

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