No Domingo passado,
com o pretexto de levar a Lei e os Profetas à plenitude, afrontava a
religião em que nasceu e que o devia ter moldado. A expressão, olho
por olho, dente por dente, parece um modelo equilibrado de justiça:
não há direito de arrancar dois olhos a quem só arrancou um, nem de
partir os dentes todos a quem só partiu alguns. É uma questão de bom
senso e delimitação da vingança, expressa na consagrada lei de
talião (Ex 21, 25+ e par.).
Jesus não propõe nenhuma emenda a essa sentença. Parece rejeitá-la
sem contemplações, avançando com o absurdo. Digo-vos: não resistais
ao homem mau. Mas se alguém te bater na face direita, oferece-lhe
também a esquerda. Se alguém quiser levar-te ao tribunal, para ficar
com a tua túnica, deixa-lhe também o manto. Se alguém te obrigar a
acompanhá-lo durante uma milha, acompanha-o durante duas.
Vai ainda mais longe. Ouvistes o que foi dito: amarás o teu próximo
e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: amai os vossos
inimigos e orai por aqueles que vos perseguem para serdes filhos do
vosso Pai que está nos céus.
Depois de ter deixado o campo livre aos maus, ainda vem com uma
proposta inacreditável: amai os vossos inimigos. Talvez que, assim,
possa tornar os bons heróis de virtude, mas também, encoraja os maus
na sua maldade.
Sei que ninguém vai seguir os ditos de Jesus para reformular o
código penal e, muito menos, se lembrará de os usar no funcionamento
do Ministério da Justiça e dos seus agentes. No entanto, é possível
que, a outro nível, Jesus tenha absolutamente razão.
2. O espírito de vingança nunca estará satisfeito com nenhum sentido
de proporcionalidade. Com o ódio na alma, à violência só se responde
com mais violência. A alternativa à maldade também não pode ser a
cedência de terreno aos reis da violência. A resistência ao mal é um
imperativo ético. A tolerância implica dizer não ao intolerável.
O século passado não foi, apenas, um século terrível, foi também o
da resistência não violenta à violência: Mahatma Gandhi (1869-1948),
Nelson Mandela (1918-) e muitos seus seguidores e inspiradores
abriram o único caminho que não tem, dentro de si, o princípio da
sua degenerescência. Dentro da atitude e da prática de resistência
não violenta à violência, existe a intuição de que é preciso que
esta resistência não nos torne, também a nós, violentos e, por outro
lado, mostre que o ciclo da violência não tem de ser uma fatalidade.
O amor dos inimigos que Jesus propõe não é um sentimentalismo. É uma
energia de transformação, nossa e dos outros. É uma virtude.
Jesus passou a vida a denunciar a injustiça e a tomar a defesa dos
oprimidos e excluídos, praticou a resistência activa ao mal. Em
pleno tribunal, não deixou de assumir a sua defesa perante o
Sumo-Sacerdote e, quando agredido, resiste: se falei mal, mostra em
quê, mas se falei bem, porque me bates?
3. Não é com lirismo que se pagam as contas ao fim do mês. Os
desempregados que o digam. Jesus saberia disso, quando disse aos
seus discípulos: Ninguém pode servir a dois senhores, porque ou
há-de odiar um e amar o outro, ou se dedicará a um e desprezará o
outro. Vós não podeis servir a Deus e ao dinheiro. Por isso vos
digo: Não vos preocupeis, quanto à vossa vida, com o que haveis de
comer ou de beber, nem, quanto ao vosso corpo, com o que haveis de
vestir. Não é a vida mais do que o alimento e o corpo mais do que o
vestuário? Olhai para as aves do céu: não semeiam nem ceifam nem
recolhem em celeiros; o vosso Pai celeste as sustenta. Não valeis
vós muito mais do que elas?
Estaremos perante outro exercício de provocação? A Bíblia hebraica
nunca pôs em concorrência Deus e o dinheiro, embora a chamada
“teologia da prosperidade”, que faz desta sinal de bênção divina,
tenha sido submetida a uma crítica feroz dos profetas.
Então, porque será que Jesus põe Deus e o dinheiro em concorrência?
Por uma razão muito simples: a sacralização do dinheiro e do seu
império é uma idolatria. Faz dele o absoluto critério de tudo. É
preciso sacrificar-lhe tudo e todos os valores. O rico nunca pensa
que é suficientemente rico e o pobre ou remediado o que deseja é ser
rico. A publicidade incendeia a insatisfação, o desejo, para nos
tornar infelizes se não tivermos tudo, e já, que ela nos propõe.
Jesus Cristo não vê no desejo um mal nem propõe o esvaziamento do
desejo como suprema iluminação. Propõe a conversão do desejo: onde
tiveres o teu tesouro, aí estará o teu coração. Zaqueu, o rico,
percebeu isso rapidamente. Passou a restituir o roubo, a nunca mais
se aproveitar das necessidades dos outros e a partilhar os seus
bens. Jesus comentou: a salvação entrou na tua casa, o que não tinha
acontecido na parábola do jovem rico.
Não há rivalidade entre Deus e a riqueza. Há rivalidade entre a
Plenitude da Vida e a distorção do desejo que se deixa possuir pelo
fascínio do dinheiro e de tudo o que ele exige e permite. |