1. O Conselho Permanente
da Conferência Episcopal Portuguesa publicou, já depois das eleições, um
brevíssimo comunicado, pedindo realismo e generosidade perante a crise.
Gostaria que o esforço de equilíbrio financeiro não prejudicasse a
economia e que não fosse relativizada a importância da saúde, da cultura
e da educação. Destaca a prioridade do bem comum de toda a sociedade
sobre interesses individuais e grupais. Os próximos tempos vão exigir
partilha de bens, mas não é a mesma coisa partilhar generosamente, por
amor à pessoa humana, e ser obrigado a distribuir. Na nossa sociedade,
ainda existem muitas expressões de egoísmo que vão desde a corrupção ao
enriquecimento ilícito, a uma visão egocêntrica do lucro, etc. Uma ética
da generosidade, da honestidade e da verdade tem de fazer parte da
cultura a valorizar. Este momento de crise pode levar-nos, a todos, a
lançar os dinamismos para a construção de uma sociedade mais fraterna e
solidária.
Destaquei, do breve comentário episcopal, as suas generosas exortações,
embora pouco analíticas. Não deixam, no entanto, de ter importância
sobretudo quando, hoje, já conhecemos o programa ultra liberal do
Governo.
Um documento do Episcopado Francês, bastante abrangente sobre a situação
presente (1), coloca o começo da crise nos EUA, na década 90 do século
passado, depois da queda do Muro de Berlim (1989) que significava o fim
da época comunista e o fracasso de um sistema de economia dirigida. A
partir daí, o caminho da economia de mercado apresentava-se como o único
possível sem precisar de bússola. Se a riqueza global do mundo talvez
tenha aumentado, também a distância entre pobres e ricos, não só
aumentou, como fez surgir novas pobrezas. O delírio da dominação da
finança sobre a economia real acabou por mostrar a que ponto é ilusória
a pretendida auto-regulação dos mercados. O que está em causa não é,
apenas, um sistema bancário perverso nem o nível absurdo das
remunerações dos quadros superiores, mas uma maneira de conceber a vida
e o papel do trabalho, do dinheiro, do consumo e da partilha das
riquezas. A economia liberal desregulada mostrou, não só os seus
limites, mas também as suas perversidades. Aliás, o liberalismo
económico acomoda-se a uma visão muito utilitarista das relações humanas
que, por seu lado, encoraja o individualismo e o “cada um por si”,
ferindo a coesão social.
2. Na base de qualquer reflexão sobre uma sociedade justa e uma vida de
qualidade, está implícita uma concepção do ser humano. Hoje,
confrontam-se, pelo menos, duas perspectivas: uma visão utilitarista que
encara o ser humano como um ser solitário que só procura o seu interesse
e o seu prazer individual e vê a sociedade como uma justaposição de
indivíduos; uma outra vê o ser humano como um ser social, a sua
felicidade é construída com os outros e não à custa deles e em seu
prejuízo. Estas duas maneiras de ver, que coabitam na sociedade,
comandam a nossa abordagem dos problemas que a afectam. Para viver em
conjunto, é preciso encontrar a melhor articulação possível entre o
individual e o colectivo. Isso implica um reequilíbrio constante entre
interesses, muitas vezes, contraditórios. Este reequilíbrio não será
feito da mesma maneira, se é privilegiada a visão utilitarista ou a
visão relacional (2).
Daí, a importância de redefinir, em cada época e em cada circunstância,
o que é o bem comum e o que ele implica. A Gaudium et Spes apresentou-o
como “o conjunto de condições da vida social que permitem, tanto aos
grupos, como a cada um dos seus membros, atingir mais plena e facilmente
a própria perfeição, (…) tendo, cada vez mais, como horizonte, toda a
família humana”.
3. Esta reflexão nasce dentro de preocupações cristãs pela vida em
sociedade, sem a pretenderem dominar e procurando os caminhos para
melhor a servirem. Seria descabida se o mundo fosse feito só de
autênticos monges budistas: a forma mais radical de resolver todos os
problemas e conflitos consiste na supressão do desejo. Hans Küng mostrou
alguns paralelos notáveis entre Jesus e Buda (Gautama). Procurou,
também, semelhanças entre monges budistas e monges cristãos (3).
Esquece-se uma diferença fundamental entre os dois caminhos. O movimento
desencadeado por Jesus não procura nem implica a extinção do desejo,
intrínseco à condição humana na busca da sua perfeição e do seu bem. É
preciso mesmo inflamá-lo, mas isso só tem sentido no processo da sua
conversão. Falamos muito de consumismo como um vício que o é, mas
esquecemos que a sociedade está dominada pela publicidade, cuja técnica
consiste em tornar infelizes quem não tem aquilo que exacerba os seus
apetites. Parece-me que a grande mensagem do Evangelho, para os tempos
actuais, consiste, precisamente, na conversão dos desejos, desde a
infância até à velhice.
A conversão do desejo não significa nada enquanto não estabelecer um
critério e uma hierarquia daquilo que realiza a pessoa em sociedade e
aquilo que a degrada.
Se as situações difíceis servirem para uma revisão profunda de critérios
de vida, a nível individual e social, não andaremos a alimentar ficções
para “depois da crise”. A crise é global e civilizacional. Os países
prósperos só andam mais enganados do que os outros.
(1) Grandir
dans la Crise, Cerf, 2011
(2) Ver, a este respeito, o interessantíssimo livro de Frei Fernando
Ventura/Joaquim Franco, Do eu solitário ao nós solidário, Verso de kapa,
Lisboa, 2011
(3) Religiões do mundo. Em busca dos pontos comuns, Multinova, Lisboa,
2005 |