1. Para além do meramente factual, talvez
nunca seja possível dizer algo de
indiscutível, de aceite por todos, acerca da
morte e da velhice.
Li, na Babelia, duas notícias bastante
desenvolvidas sobre duas obras literárias
que me impressionaram pela sua aparente
banalidade. A primeira referia-se ao Libro
de los muertos do grande escritor Elias
Canetti, judeu sefardita (1905-1994). É
constituído por cadernos de apontamentos que
testemunham a sua permanente “declaração de
guerra à morte”. Para ele, mais repugnante
do que a morte, é a submissão à morte: “O
objecto sério e concreto, a meta declarada e
explícita da minha vida é conseguir a
imortalidade para todos os homens. Em
tempos, quis dar este objectivo ao
personagem central de um romance que a si
mesmo se chamava o inimigo da morte”. Do seu
projecto de matar a morte ficaram fragmentos
e aforismos de luta, agora publicados.
Dizer, como Fernando Savater, que se trata
de um protesto contra o irremediável, não é
sinal de grande argúcia.
A segunda é sobre um romance, El don de la
vida, acerca da velhice e da morte, de
Fernando Vallejo, escritor colombiano.
Retardou-o quanto pôde, mas apressou-se,
agora, a escrevê-lo, com 67 anos. Gostaria
de esperar pelos 78 ou 80 anos para o
elaborar a partir da sua própria
experiência. Teme, porém, que, nessa idade,
já não lhe apeteça, já não tenha gosto
nenhum em falar da velhice.
Dir-se-á que sobre esta idade há atitudes
prosaicas mais eficazes do que as obras
literárias ou filosóficas. Segundo consta, a
medicina anti-envelhecimento, focada na
prevenção e detecção precoce de uma
patologia, está apoiada em cinco pilares:
nutrição, medicina desportiva, estética,
optimização hormonal e genética e biologia
molecular.
Como ainda não se consegue evitar o
envelhecimento, aconselha-se a envelhecer
com qualidade. Esta dependeria de sete
factores: prática regular de exercício
físico, uma boa alimentação, não fumar, não
beber bebidas alcoólicas, manter um peso
regular, dormir sete a oito horas e
estimular o cérebro.
As consequências da revolução biotecnológica
e dos avanços da neurofarmacologia ainda
estão cheios de incógnitas que a Bioética
tem de seguir com cuidado, pois os cenários
possíveis não são todos igualmente
desejáveis. Não se esqueça a sentença de
Paracelso: “não são os olhos que fazem o
homem ver; é o ser humano que faz com que os
olhos vejam”.
2. Por enquanto, todos esses avanços, na
direcção de uma vida longa e feliz, ainda
não conseguem “matar a morte” como desejava
Elias Canetti. Como preencher, em nós, o
grande vazio deixado pela morte daqueles que
amamos? A morte tornou-se, no entanto, nas
sociedades modernas, um tabu, um desejo de a
negar ou, pelo menos, de a esconder. No
entanto, as obras acerca da arte de bem
morrer e de responder às perguntas sobre o
Além estão sempre a aumentar. Nem sequer
faltam enciclopédias acerca de todos os
saberes e crenças sobre a morte e a
imortalidade. As várias religiões encenaram,
na sua linguagem simbólica e nos seus ritos,
formas de reanimar o grande vazio deixado
pela morte.
Desde a Antiguidade, segundo os diferentes
povos e culturas, projectaram-se para depois
da morte os cenários geográficos do que
havia de melhor, de pior e também de
medíocre neste mundo. Dir-se-á que essa
imaginária duplicação do mundo só prova que
o desejo de ser humano para sempre é
incurável, mas o desejo não é suficiente
para fundar uma realidade. O único caminho
aconselhável seria o da reconciliação com os
nossos limites. O que não tem remédio,
remediado está. É, porém, aqui, que tudo se
complica. Enquanto certas formas de
sabedoria se empenham em erradicar o desejo
até ao vazio total, para atingir a
verdadeira iluminação, passando quase sempre
por diversas reencarnações, há outros
caminhos que, longe de trabalharem pela
aniquilação dos desejos, os intensificam,
exigindo, no entanto, a sua conversão, um
nascer de novo.
3. No cristianismo juntaram-se, no seu
nascimento e ao longo dos séculos, várias
influências. Na Quarta Feira de Cinzas, nas
palavras do seu antigo ritual, há uma
antropologia pouco entusiasmante que roça o
niilismo: lembra-te que és pó e em pó te
hás-de tornar.
Não é, porém, nessa declaração, que se pode
encontrar a originalidade da revelação
cristã. Esta é apresentada por S. Lucas.
Jesus enviou em missão os discípulos que
regressaram entusiasmados com o êxito do seu
trabalho. Jesus confirmou que tudo aquilo
tinha sido espantoso, mas não quis apoiar
uma Igreja do sucesso: Não vos alegreis pelo
facto de nada deste ou de outro mundo ter
resistido à vossa palavra; alegrai-vos,
sobretudo, porque os vossos nomes estão
escritos nos Céus. O mais interessante é que
o próprio Jesus se comoveu com o que disse:
muitos profetas e reis quiseram ver o que
vedes e não viram, ouvir o que ouvis e não o
ouviram (Cf. Lc 10, 17-22). Afinal, que
disse Jesus de tão inaudito? Traduzindo:
alegrai-vos porque a vossa vida está para
sempre inscrita no coração de Deus e nada
nem ninguém vos poderá arrancar desse amor.
Sois pessoas amadas para sempre. Não há
morte que possa vencer este amor.