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Jornal PÚBLICO, Lisboa, 5 de Dezembro de 2010 |
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Lanza del Vasto não é uma personalidade inteiramente desconhecida em Portugal. Proferiu, em Abril de 1978, conferências em Lisboa, Porto, Coimbra e Évora, tendo voltado ao nosso país em 1979. Com Simone Gebelin funda, em 1948, uma comunidade que reaparece, mais tarde, com o nome de ressonância bíblica, L'Arche (a Arca). Passa a dedicar a sua vida ao desenvolvimento da comunidade, à sua obra filosófica e poética, à luta pela paz, à denúncia do perigo nuclear militar e civil. Alguns jejuns públicos que efectuou – por vezes com outras personalidades muito conhecidas – tiveram grande repercussão em França e na Europa, destacando-se, em 1972, a sua activa presença contra a extensão do campo militar no planalto de Larzac do sul de França. Nessa acção esteve ao lado dos camponeses e agricultores locais, do nascente e vigoroso movimento ecológico e dos movimentos pela paz e pela justiça. Antecipando o debate sobre as alterações climáticas, alertou com vigor para o risco de um “dilúvio feito pela mão do homem”. É com justiça que o editor, José Costa Marques, ao apresentar esta obra, recorda Manuela Bio Lourenço que animou, em Sintra e em Lisboa com repercussão noutros pontos do país, um grupo de amigos da Arca. António Alçada Baptista fazia parte dos admiradores de Lanza del Vasto, visitou-o em França e escreveu as impressões que lhe deixou: “Uma das coisas que mais me impressionou em Lanza del Vasto foi isto: de entre os vários «profetas» do meu tempo, foi dos poucos – o único que conheci – que acompanhou o seu pensamento com a sua maneira de viver”. 2. Os cristãos estão a celebrar o Advento, uma peregrinação à Fonte do Desprendimento, do despojamento absoluto, o Presépio, Kenôsis de Deus, segundo a narrativa de S. Lucas. Mais radical ainda é a voz do IV Evangelho: O Verbo fez-se carne, fragilidade humana, e na carne nos veio a graça e a verdade, graça sobre graça, do Deus que ninguém jamais viu. Dessa carne crucificada jorrou a fonte de sangue e água sobre o mundo. Alguns Evangelhos Apócrifos deram largas à imaginação para encher de fantasia o despojamento do Presépio. Com o advento da modernidade, época do desencantamento do mundo, os historiadores resolveram acabar de vez com delírios angélicos, rusticidades pastoris, festas lunares, repetindo com ar triunfante: Jesus não nasceu a 25 de Dezembro, não foi dado à luz numa gruta, não havia burro ou vaca a assistir, os magos não eram reis nem eram três, não houve pastores a adorá-lo nem anjos a cantar, não fugiu para o Egipto. Vendo bem as coisas, acabaram por colocar o Menino Jesus, Nossa Senhora e S. José no mundo dos sem abrigo. Por portas travessas, reencontraram as narrativas do Presépio. Francisco de Assis, o ecologista medieval, foi à Fonte e construiu a miniatura de um mundo reencantado, um sonho de reconciliação universal. João Paulo II, para derrubar muros entre as religiões e encontrar uma fonte divina para a paz do mundo, chamou-as todas a encontrar o espírito de Assis, o espírito da paz. Com este Domingo começa a segunda etapa da peregrinação ao Presépio, ao lugar dos sonhos. Quem tiver uma Bíblia à mão vá ler os versículos 1 a 10 do capítulo onze de Isaías. Deixo, aqui, apenas um fragmento: (…) O lobo viverá com o cordeiro e a pantera dormirá com o cabrito; o bezerro e o leãozinho andarão juntos e um menino os poderá conduzir. A vitela e a ursa pastarão juntas, as suas crias dormirão lado a lado; o leão comerá feno como o boi. A criança de leite brincará junto ao ninho da cobra e o menino meterá a mão na toca da víbora. Não mais praticarão o mal nem a destruição em todo o meu santo monte: o conhecimento do Senhor encherá o país como as águas enchem o leito do mar. Quem quiser fazer uma peregrinação à sua vida interior encontrará, como diz S. João da Cruz num poema imortal, “A fonte que mana e corre,/ Embora seja noite./ Aquela eterna fonte não a vê ninguém/ E bem sei onde é e donde vem,/ Embora seja noite”. No desprendimento, na frugalidade, na sobriedade, encontrará uma fonte de partilha com todos os aflitos. A peregrinação à fonte, em Gandhi, em Lanza del Vasto, em Francisco de Assis, em todos os místicos é uma peregrinação de desprendimento e de iluminação interior. Sem ela andamos com os sonhos trocados. Queremos a salvação naquilo que nos perde de nós, dos outros, da natureza e de Deus. |
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Edições Sempre-em-Pé, Águas Santas 2010 |
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