1.Os católicos que,
hoje, forem à Missa deparam com um texto do Evangelho de S. Lucas
muito estranho. É tirado do capítulo 15. Este capítulo começa por
dizer que todos os publicanos e pecadores se aproximavam de Jesus
para o ouvir. Os fariseus e os escribas, porém, murmuravam: este
homem recebe os pecadores e come com eles.
Se tivermos em conta
o que estas expressões e grupos sociais representavam, Jesus é o
homem que subverte todos os valores. Gosta mais dos maus do que dos
bons. As simpatias vão para os que não prestam. Ora, a virtude deve
ser premiada e o vício, reprimido.
Vem a seguir uma
passagem que não pode fazer parte de um bom manual de pastorícia.
Abandonar 99 ovelhas para ir procurar a que se tinha desligado do
rebanho é expor-se a perdê-las todas. A parábola da dracma perdida,
que segue a anterior, não sabe que o tempo é dinheiro. Por outro
lado, ninguém dirá, que a longa narrativa sobre o chamado filho
pródigo possa figurar na biblioteca de uma Escola de Pais. Este
capítulo, no seu conjunto, nem na secção de perdidos e achados faria
boa figura.
Então, porque terá
sido escolhida a última parte – a parábola impropriamente chamada do
filho pródigo – para a Missa do 4º Domingo da Quaresma? Serão também
os Evangelhos “manuais de maus costumes”, repetindo a expressão que
José Saramago usou para o conjunto da Bíblia?
2. Este texto foi,
pelo contrário, muito bem escolhido. Toca, de forma indirecta,
segundo a linguagem própria das parábolas, no essencial da revolução
religiosa de Jesus, perante a qual continua a existir grande
resistência nas comunidades cristãs. Foi, aliás, para elas, para
nós, que S. Lucas a escreveu.
Antes de mais, é
preciso ler e entender o que está escrito. O núcleo da parábola não
é constituído pela conversão do filho pródigo, como habitualmente se
diz. Se assim fosse, teria de começar assim: um homem tinha um filho
e este foi ter com o pai e pediu-lhe a herança que lhe
correspondia…Ora, a parábola começa por dizer: um homem tinha dois
filhos. Na lógica da parábola, o mais novo, o estoura-vergas,
representa os classificados por pecadores e cobradores de impostos
(duplamente pecadores) e o filho mais velho, os fariseus e escribas,
as duas categorias que presidem ao capítulo em análise, mas
universalizando o alcance de duas típicas formas de existência.
A primeira retrata
aqueles que tendo vivido à margem de todas as regras, cometendo os
maiores desvarios, descobrem, um dia, que andam a dar cabo da vida
e, arrependidos, encontram o caminho da sua recuperação. A segunda
representa o mundo religioso daqueles que medem tudo pela
observância ou infracção da lei, sempre prontos a espiar o
comportamento dos outros a partir da sua tabela de valores. O amor,
a gratuidade, a compaixão, a festa, não fazem parte do seu universo
e Deus é um juiz segundo as regras que eles estabeleceram em seu
nome. Esquecemos, aliás, que a parábola é um triângulo e a revolução
cristã não atinge só os típicos comportamentos dos dois filhos, mas
sobretudo o comportamento do Pai, que nada tem a ver com a religião
farisaica.
3. O perigo das
nossas leituras dos Evangelhos reside na forma habitual como são
proclamados na liturgia: Naquele tempo, etc. Fazem bem ao levar-nos
até ao começo de dois mil anos de história cristã. O cristianismo
também é uma memória. Corre-se, porém, o risco de pensar que os
classificados como pecadores e publicanos e os designados por
fariseus e escribas (os letrados) são categorias sociais e
religiosas de um tempo que já passou e que não têm nada a ver
connosco.
Na verdade, é
precisamente o contrário. As comunidades cristãs de hoje não têm de
resolver os problemas das primeiras comunidades e, muito menos, os
confrontos em que Jesus foi envolvido. Se lemos os textos hoje, é
para encontrar correspondências – não têm que ser literais,
simétricas – no nosso tempo, na vida da sociedade e da Igreja, de
outra forma, nada justificaria a sua leitura.
Seria, no entanto,
perigoso participar numa celebração da Missa e começar, cada um, a
ver quem são os classificados como pecadores e os autenticamente
fariseus da comunidade. Nada pode garantir o acerto. Por isso, Jesus
proibiu-nos de julgar. Uma espantosa sabedoria, depois de muitas
experiências ao longo dos séculos, chegou à conclusão de que a
Missa, celebrada em nome de Deus, deve começar sempre pelo acto de
cada um se confessar pecador e pedir a misericórdia de Deus e dos
irmãos. Sem apontar o dedo a ninguém, todos são interpelados a
começar por quem preside.
Nada disto impede
que a Igreja, no seu conjunto, interrogue o Direito Canónico, os
seus comportamentos e as diferentes instâncias das paróquias, das
dioceses, do Vaticano, em suma, a sua pastoral à luz do capítulo 15
do Evangelho de S. Lucas, aqui evocado.
Que acolhimento têm,
na Igreja, as mulheres, os intelectuais heterodoxos, os divorciados
recasados, os homossexuais? Não haverá, hoje, nas comunidades
cristãs, grupos que acham escandaloso que se perca tempo com ateus,
agnósticos, imigrantes de outras culturas e religiões, com o
pretexto de que vêm minar os nossos valores culturais e as raízes
cristãs da Europa? |