FREI BENTO DOMINGUES, OP

Não nasci na China

 

1. Li, não sei onde, que nenhum dos grandes mestres da humanidade – Buda, Confúcio, Sócrates, Cristo – teria currículo para se candidatar a um modesto lugar de professor de qualquer Universidade. É verdade. Não escreveram nada, mas continuam a encher bibliotecas. Parece que Jesus Cristo sabia ler, mas também não deixou nada escrito. Consta que se entreteve a rabiscar na areia, não sei lá o quê, enquanto se preparava para gozar os mestres da hipocrisia moral que pretendiam justificar o apedrejamento de uma mulher surpreendida, sozinha, em flagrante adultério.

Jornal PÚBLICO, Lisboa, 19 de Dezembro de 2010

Quando chegam as festas do Natal e da Páscoa, encontro sempre pessoas que, exibindo o seu relativismo cultural e a sua distância em relação ao cristianismo, dizem com ar de grande descoberta: se fosses chinês, tinhas poucas hipóteses de participar nestas celebrações, reduzidas agora a festas familiares, sem qualquer conteúdo cristão. Respondo, com Paul Ricœur, que não estão a falar de mim, mas de alguém que desconheço. Eu não tive nem tenho nenhuma hipótese de escolher os meus antepassados nem os meus contemporâneos. Não sou chinês nem por nascimento nem por herança. Cresci na fé cristã, de tradição católica romana, em Terras de Bouro, à qual fui aderindo, cada vez mais.

Como aprendiz de teólogo, tenho procurado aprofundar as razões da minha esperança, descobrindo, acolhendo, reelaborando os argumentos que me parecem mais plausíveis e afastando aqueles que se manifestam menos adequados a exprimir o que há de mais central na minha adesão. No plano do estudo, esta minha herança foi e é sempre confrontada com várias outras tradições, compatíveis ou adversas, que surgem nos meus caminhos. No diálogo com pessoas nascidas noutras tradições e adesões, tento perceber os seus percursos, as suas doutrinas – incorporando-as muitas vezes – e apresentando, também, os motivos e as razões das minhas preferências. O mito bíblico da Torre de Babel e da chamada dispersão e confusão das línguas não podem ser interpretados como

uma catástrofe, mas como “a simples verificação da pluralidade característica de todos os fenómenos humanos”. Aliás, como diz Desidério Murcho, o valor epistémico da diversidade de opiniões é permitir que as ideias mais díspares sejam defendidas por quem genuinamente acredita nelas. Por outro lado, “mistério é o dom que nem sempre vê quem olha de fora” (H. Helder).

2. Para todas aquelas pessoas que se deixam impressionar pelas narrativas evangélicas do Presépio e acreditam que aquele menino é verdadeiramente o Emanuel, Deus-connosco, têm a vantagem de o não poderem ver como uma divindade prepotente que nos tem sob controlo ou sob ameaça. Como bem diz o catalão José Antonio Pagola, Deus nem sequer é “omnipotente”. Não pode, por exemplo, abusar de nós, manipular, humilhar ou suprimir a nossa liberdade. Nunca poderá prejudicar-nos ou fazer-nos mal. Resta-lhe fazer o que pode o amor da pura gratuidade. Aliás, para agredir, destruir, prejudicar não é preciso ter muito poder. Pelo contrário, para acolher, perdoar, respeitar – “passar fazendo o bem”, como se diz de Jesus – é preciso ser grande, não com a grandeza que esmaga, mas com aquela que o amor liberta.

Foi a partir do itinerário de Jesus, do seu percurso humano, nos seus momentos felizes e trágicos – testemunhados nos escritos do Novo Testamento – que os discípulos acolheram a revelação de um Deus diferente, um Deus na fragilidade, na carne, na cruz e nos testemunhos de uma misteriosa vitória sobre a morte. Segundo esses textos, o segredo deste ser humano para os outros, sem restrição, mas a partir dos mais abandonados – o verdadeiro “homem novo” – encontra-se na relação filial com Aquele que tratava, em linguagem nada litúrgica, familiar, por Abba, o Pai que não faz acepção de pessoas ou de povos. Todos os seres humanos, de todas as eras e de todas as culturas, formam uma só família. A identidade do cristianismo só pode ser apreendida a partir dessa experiência e não das deformações da cristandade. Os chamados impérios cristãos são traições.

3. Quem visita, hoje, o verdadeiro Presépio? A resposta pode ter uma dupla versão. Não é difícil admitir, pelo menos teoricamente, que, quando alguém adere verdadeiramente a Jesus Cristo, descobre a sua presença em todos os seres humanos – ateus, agnósticos, crentes de qualquer religião ou sem religião – que servem, desinteressadamente, seja em que circunstância for, a alegria dos outros.

De novo, segundo os textos cristãos, quem, pelo contrário, não tendo nenhuma referência explícita religiosa, se dedica voluntariamente a socorrer aqueles que precisam de ajuda, só e unicamente porque precisam, encontra-se, mesmo sem o saber, com o Deus de Jesus Cristo, o grande clandestino da história humana (Mt 25, 37-40).

Não pretendo fazer cristãos à força de subtilezas teológicas. Na prática do Jesus de Nazaré, uns viram uma traição à pátria e ao império, outros descobriram o salvador do mundo (Jo 4, 42).

Não nasci na China, mas creio que Jesus Cristo nasce todos os dias, em qualquer lugar, no coração de todos os que reconhecem, no outro, o seu irmão feliz ou atribulado. Nesta lógica dos pequenos passos, vai nascendo a globalização da solidariedade, o Presépio da nossa esperança. Bom Natal!