1. Bento XVI fez da chamada “Audiência Geral
de Quarta-Feira” um tempo de abertura ao conhecimento dos
autores mais significativos da cultura teológica da tradição
cristã do Oriente e do Ocidente. Começou pelos Padres da Igreja,
passou às grandes personalidades da Alta Idade Média e, mais
recentemente, debruçou-se sobre alguns teólogos medievais das
Ordens Mendicantes. O Papa centrou-se em duas principais: na de
S. Francisco de Assis (1182-1226) e na de S. Domingos de Gusmão
(1170-1221). Acerca dos franciscanos, destacou Santo António e,
com especial carinho, São Boaventura (dias 3, 10 e 17 de Março):
“Confesso-vos que, ao propor-vos este tema, sinto uma certa
saudade, porque volto a pensar nas pesquisas que, como jovem
investigador, fiz precisamente sobre este autor, que me é
particularmente caro. O seu conhecimento influiu em grande
medida na minha formação”.
Na última das audiências que lhe dedica, refere-se às concepções
diferentes de teologia em S. Boaventura e em S. Tomás de Aquino.
Não ultrapassa os clichés habituais e oculta as polémicas que
opuseram, frontalmente, estas duas grandes figuras da Igreja
medieval e o significado desta oposição, tentando uma harmonia
na diferença, algo forçada (1).
2. Bento XVI não morria, aliás, de amores não só por algumas das
expressões contemporâneas mais significativas da tradição
tomista – por exemplo, as de Karl Rahner e de Edward
Schillebeeckx – como até pelas próprias figuras fundadoras desse
caminho: Alberto Magno e o seu discípulo, Tomás de Aquino. São,
no entanto, as referências medievais incontornáveis do mais
profundo entendimento entre razão e fé, ciências, filosofia e
teologia. O próprio Karl Rahner considerava Tomás de Aquino um
pensador moderno.
Agora, nas catequeses de Quarta-Feira (24 de Março; 2, 16 e 23
de Junho) é Bento XVI que o lembra: “ Santo Alberto Magno abriu
a porta para a recepção completa da filosofia de Aristóteles na
filosofia e teologia medieval, uma recepção elaborada depois de
modo definitivo por S. Tomás. Esta recepção de uma filosofia,
digamos, pagã pré-cristã, foi uma autêntica revolução cultural
para aquela época. E no entanto, muitos pensadores cristãos
temiam a filosofia de Aristóteles, a filosofia não cristã,
sobretudo porque ela, apresentada pelos seus comentadores
árabes, tinha sido interpretada de modo que parecia, pelo menos
sob alguns pontos, totalmente irreconciliável com a fé cristã.
Isto é, apresentava-se um dilema: fé e razão estão ou não em
conflito entre si?”.
Foi num dos textos sobre Tomás de Aquino (16 de Junho) que o
Papa explicitou a diferença entre o que era, desde os Padres da
Igreja, o pensamento cristão e a construção nova, original,
deste filósofo e teólogo, ao levar a cabo o caminho iniciado por
Alberto Magno. Para Tomás de Aquino, se houver respeito pelo uso
autónomo da razão – exercido nas diferentes ciências e
filosofias – e pelo acolhimento cristão da autêntica revelação,
em vez do conflito pode nascer uma harmonia, embora com tensões
permanentes. A graça não substitui a natureza. São duas
linguagens do mesmo Logos divino que age tanto no âmbito da
criação como no da redenção.
3. Bento XVI tem toda a razão em lembrar, no seu magistério, os
momentos históricos mais criadores do pensamento cristão do
Oriente e do Ocidente. No século XX, foi impressionante a
investigação histórica e a edição crítica das obras dos grandes
autores. Dormem, no entanto, nas grandes bibliotecas ignoradas
pelo povo cristão e pouco frequentadas pelos agentes de
pastoral.
Para muitos, as referidas e meritórias audiências catequéticas
não conseguem fazer esquecer que, nos anos 80 do século passado,
o Cardeal Ratzinger, Prefeito da Congregação para a Doutrina da
Fé, desautorizou as tendências mais inovadoras da teologia
pós-conciliar, provocando um grande vazio no pensamento
católico. As dificuldades de confronto com a cultura moderna e
contemporânea acentuaram-se, embora João Paulo II tenha
verificado que o tema das relações entre razão e fé, entre
ciência, filosofia e teologia, era essencial e precisava de ser
reavaliado, recuperando a memória de Galileu e acolhendo as
investigações no campo da evolução. Bento XVI retomou essas
preocupações perante os perigos do novo ateísmo, do relativismo,
do fundamentalismo. Razão e Fé, Verdade na Caridade, tornaram-se
lemas do seu pontificado.
As questões que nascem dessa relação, com alguns séculos de
conflitos, não se resolvem com decisões de boa vontade e com
alguns gestos de acolhimento de grandes cientistas. A hierarquia
católica continua a sustentar posições em nome da fé e da moral,
sobretudo em alguns âmbitos já muito denunciados, que uma ética
racional do discurso exigiria a sua urgente revisão. Não se pode
invocar a razão e, depois, não ligar às suas exigências, como
escreveu o filósofo Emilio García Estébanez que conhecia muito
bem a teologia e a sua história (2).
É indispensável olhar para o passado e para o futuro, mas as
urgências do presente não se resolvem só com memória e sonho. |