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Jornal PÚBLICO, Lisboa, 12 de Dezembro de 2010 |
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Na celebração de hoje, o canto de entrada é uma convocatória geral: “Alegrai-vos sempre no senhor. Exultai de alegria: o Senhor está perto”. Chama-se, por isso, o Domingo Gaudete. Segue, pouco depois, um fragmento da inesgotável poética do profeta Isaías: Alegrem-se o deserto e o descampado, rejubile e floresça a terra árida, cubra-se de flores como o narciso, exulte com brados de alegria! (…) Dizei aos corações perturbados: tende coragem, não temais! Aí vem o vosso Deus (…) Ele vem salvar-vos. Então, se abrirão os olhos dos cegos e os ouvidos dos surdos. O coxo saltará como um veado e a língua do mudo cantará de alegria. (…) Reinarão o prazer e o contentamento. Não haverá mais tristeza nem aflição (Is 35, 1-10). Palavras destas tanto podem ajudar a esperança como o desengano. Um político que as fizesse suas estaria perdido nas próximas eleições. Tem, por isso, alguma pertinência a distinção entre a ética da responsabilidade e a ética da convicção. Esta é característica da poesia profética. Não exageremos, no entanto, a distinção. A seguir à II Guerra Mundial, os dirigentes políticos europeus encontraram as palavras, as atitudes e os gestos de encantamento para fazer renascer das cinzas a Europa. Hoje, pelo contrário, alguns observadores queixam-se da mesquinhez dos dirigentes dos grandes países europeus perante as dificuldades dos mais periféricos. Os telejornais também dão um grande contributo para a depressão colectiva. 2. Os cristãos vão à Missa por causa de boas notícias, para interiorizarem o Evangelho. Hoje, são apresentadas, em contraste, duas grandes figuras históricas que estão na raiz do cristianismo: João Baptista e Jesus (Mt 11, 1-14). São dois judeus não alinhados, mas Jesus parece menos obsessivo na sua oposição às diferentes correntes religiosas dessa época, embora muito mais radical. Os saduceus, instalados no seu poder sacerdotal, asseguravam os seus privilégios em alianças suspeitas com o ocupante romano; os fariseus perdiam-se numa casuística complicada inacessível à população menos letrada; os essénios, sedentos de pureza, praticavam-na num espírito de casta fechada. Se João Baptista teve contactos com eles, distinguia-se pela sua abertura penitencial a todos. Como os outros pregadores baptistas, João é um contestatário: evita Jerusalém, as suas corrupções e compromissos. Exalta o deserto, referência tradicional de purificação e de contacto com Deus. Para lá da tradição de que seriam primos, a passagem citada do Evangelho pressupõe um caminho que Jesus e João fizeram juntos. Este foi mesmo um guia de Jesus a quem baptizou no rio Jordão. Também é sabido que, a partir desse momento, cada um seguiu o seu caminho. Jesus teve uma experiência mística na qual a voz do céu não tinha nada a ver com o rigorismo moral do Baptista. A pregação da proximidade do “Reino de Deus”, na boca de Jesus, não é uma ameaça. É uma declaração da proximidade do amor, estranha à lógica do prémio e do castigo. Entretanto, João já tinha sido preso a mando de Herodes. Segundo S. Mateus e S. Lucas, o isolamento relativo da cadeia e as informações contraditórias acerca do que Jesus andava a fazer deixaram-no um bocado desesperado. Mandou, por isso, pessoas da sua confiança com uma pergunta muito precisa e directa ao Nazareno: És tu aquele que há-de vir ou devemos esperar outro? Esta pergunta supõe uma intriga nascida da rivalidade entre o movimento de Jesus e os discípulos do prisioneiro. Daí, o sentido da pergunta de João: o seu antigo discípulo está a ser um seguidor ou um traidor? 3. Jesus, servindo-se dos sonhos de Isaías, responde com factos: Ide contar a João o que vedes e ouvis: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são curados, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e a Boa Nova é anunciada aos pobres. E bem-aventurado aquele que não encontrar em mim motivo de escândalo. Jesus reconhece a grandeza moral do seu antigo mestre: Entre os filhos de mulher, não apareceu ninguém maior do que João Baptista, acrescentado que o menor no Reino dos céus é maior do que ele. João queria uma reforma da religião e dos costumes; Jesus subverte não só a religião do templo e dos diferentes grupos religiosos como o próprio moralismo ascético de João Baptista. O que distingue estas duas grandes figuras pode ser sintetizado da seguinte maneira: a reforma religiosa proposta por João não vai muito além da moral e da ascese; Jesus, pelo contrário, é um humorista. Diverte-se a mostrar, em gestos e parábolas, que o amor que Deus nos tem não depende das práticas nem das instituições que arranjamos para lhe agradar. A sua alegria é outra e a nossa também. Se lêssemos as narrativas do Novo Testamento sem beatices e reparássemos na ironia, no riso e no humor que as percorre, seria fácil descobrir quanto o Evangelho é divinamente divertido! |
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