1. O maior inimigo do cristianismo
é a ocultação do essencial. Todos os textos do Novo Testamento –
cada um com o seu estilo – são narrativas de rupturas, de
processos de transformação, de actuações escandalosas, para
tocar no que há de mais decisivo na prática de Jesus, que saltou
as barreiras das convenções sociais, culturais e religiosas em
que nasceu. Hoje, alguns historiadores parecem apostados em
mostrar que não há rupturas. Fazem um esforço espantoso de
investigação para reduzir Jesus e a sua mensagem a uma das
correntes do mundo judaico. Se, antes, certa apologética e
certas elaborações cristológicas faziam de Jesus uma figura
celeste caída do céu no seio da Virgem Maria, sem história nem
geografia terrestres, hoje, procura-se explicar tudo pela sua
condição judaica e pelas ideias correntes no judaísmo plural do
seu tempo. Para eliminar falsas rupturas, acabam por não
explicar como é que Jesus se tornou, por um lado, uma figura tão
polémica no interior do judaísmo e, por outro, uma figura
universal, interpretada por S. Paulo como não cabendo nos
limites do judaísmo. É certo que Jesus não deixou nada escrito
acerca das suas experiências, das suas perplexidades e das suas
opções. Se eliminarmos, porém, a originalidade inconfundível da
sua personalidade e da sua mensagem, dentro e fora do judaísmo,
de quem falam os textos do Novo Testamento, tanto os canónicos
como os apócrifos? Haverá, dentro dessas narrativas, alguma
outra personalidade que o possa substituir e a quem possam ser
atribuídas as acções e as palavras de Jesus?
Comecemos pelo princípio. Jesus levou muitos anos a encontrar o
seu caminho. Quando julgou que o tinha encontrado guiado por
João Baptista – o seu baptismo, de tão incómodo para o seu
prestígio, deve ser um facto histórico – tem uma experiência que
o afasta deste mestre para seguir o seu próprio caminho. Essa
experiência vem narrada em todos os Evangelhos, embora segundo a
perspectiva de cada um. O céu abriu-se e a sua voz era diferente
da pregação avinagrada de João Baptista: és um filho muito
amado. A partir daí, sentiu a necessidade de fazer um longo
retiro para tudo rever. Foi tentado, nesse retiro, pelas figuras
do messianismo do seu tempo e, no fundo, pelas maiores e
constantes tentações humanas.
2. Um messias verdadeiro tinha de se apresentar com uma solução
clara para os problemas económicos, políticos e religiosos do
seu tempo e do seu povo. Jesus, no retiro, foi atormentado por
essas expectativas, que ele interpretou como tentações
diabólicas, isto é, tentações que o desviavam, radicalmente,
daquilo que pretendia fazer e daquilo que lhe parecia mais
importante.
Conta o Evangelho de Marcos que até os discípulos que escolheu
não compreendiam o seu caminho. Entre o capítulo quatro e o
capítulo dez, isto é repetido oito vezes. Jesus vê-se obrigado a
dizer a Pedro, figura destacada do grupo: arreda-te de mim
Satanás, porque não pensas as coisas de Deus, mas dos homens (Mc
8, 33).
Donde vinha este desentendimento? Os discípulos não queriam
abandonar a teocracia implicada na noção de Reino de Deus.
Julgavam que tinham sido chamados por Jesus para participarem no
reino do poder da dominação divina, segundo os modelos
dominantes do messianismo. Esta obsessão era tão grande e tão
persistente, colocando os discípulos numa vergonhosa luta
interna pelo poder, que Jesus sentiu a necessidade de os reunir
a todos para lhes mostrar que estavam completamente enganados.
Na sua proposta não havia “tacho” para ninguém. Quem quisesse
ser o primeiro que se colocasse ao serviço de todos: o Filho do
Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua
vida em resgate por todos (Mc 10, 45).
Mateus (23, 8-11) não atenua o combate ao carreirismo na
comunidade cristã: Quanto a vós, não vos deixeis tratar por
“mestre”, pois um só é o vosso Mestre e vós sois todos irmãos.
E, na terra, a ninguém chameis “Pai”, porque um só é o vosso
“Pai”: aquele que está no Céu. Nem permitais que vos tratem por
“doutores”, porque um só é o vosso “Doutor”: Cristo. O maior de
entre vós será o vosso servo.
3. Chegados a este ponto, fica claro que nenhuma teocracia se
pode reclamar de Jesus nem ele propôs qualquer modelo económico,
político, cultural ou religioso. Não por indiferença, mas porque
pertence aos seres humanos, dos diferentes povos e culturas,
elaborá-los. Fica, porém, um critério e um fermento: só vale, do
ponto de vista humano, aquilo que se fizer para serviço de
todos, não para dominação de uns pelos outros, sabendo que cada
um se considera demasiado grande para ser, apenas, um bom irmão.
Tocámos no essencial. Jesus, a partir de uma experiência divina,
vinha revelar que todos os seres humanos estão inscritos no
coração de Deus e que a tarefa de cada um é inscrever os outros,
mesmo os inimigos, no seu próprio coração. Neste reino não há
excluídos. Quando fez esta revelação, narrada por S. Lucas, o
próprio Jesus se comoveu e exultou de alegria sob a acção do
Espírito Santo (Lc 10, 17-22). Era a primeira vez na história
humana que se ouviam estas palavras.
A Quaresma, como retiro, destina-se a rever tudo e a ficar com o
essencial. Que Deus nos perdoe a todos. |