1. As celebrações religiosas sem emoção são
uma seca, mas uma religião dominada, apenas, por fluxos
emocionais cai na cegueira fundamentalista. A fórmula "fé e
razão" - fé viva e razão inteligente - é uma proposta saudável
de mútuo estímulo e de vigilância recíproca. Tornou-se, no
entanto, recorrente falar da troca das grandes Igrejas
clássicas, católicas ou protestantes, formalistas, doutrinais e
dogmáticas, pelas Igrejas pentecostais e novos movimentos
religiosos com narrativas de doenças e respectivas curas
milagrosas, sublinhadas com música estridente.
Serão, todavia, respostas adequadas aquelas que copiam as
práticas das Igrejas protestantes americanas, como fez, por
exemplo, o católico filipino Mariano Velarde, lançando, a sul de
Manila, o movimento chamado "El Shaddai"? Fundado em 1980, reúne
mais de oito milhões de fiéis. É o maior e mais discutido
movimento religioso do arquipélago e já construiu um dos maiores
templos de toda a Ásia. Não me parece que seja esse um grande
exemplo de imaginação criadora perante os desafios que as
mudanças culturais e religiosas pedem aos movimentos católicos,
seja em que país for. Depois da euforia da moda, virá a
depressão.
2. A Europa emancipada da influência cristã teme, agora, o
"regresso da religião" confundido com as ameaças do
fundamentalismo islâmico. Esquece a complexidade do fenómeno
religioso. As religiões, como diz o historiador F. Diez de
Velasco, são sistemas culturais e simbólicos que oferecem
explicações do mundo que potenciam a estabilidade, mas também
podem veicular forças de desarticulação. Apostam na paz, mas
também utilizam a violência, sustentam a concórdia e a revolta.
Aliás, as religiões não são apenas diversas, são também
multifuncionais e manifestam-se na multiplicidade de
experiências e de âmbitos, desde o individual e familiar - onde
o culto é dirigido pelo pai ou pela mãe - até ao universal,
passando pelo étnico, o imperial e o nacional (1).
Este panorama não diz a razão desses contrastes. Muitos dos que
desejariam ver o fim das religiões julgam-nas, apenas, factores
de violência que querem substituir por uma teoria universal da
civilização. Peter Sloterdijk termina o seu livro sobre a
"Loucura de Deus", isto é, sobre o combate dos três monoteísmos,
com uma nova confissão: "Repito-o como um credo e desejo que
tenha suficiente energia para se propagar mediante línguas de
fogo: o caminho da civilização é o único que ainda está em
aberto."
Inspirou-se num grande egiptólogo, Jan Assmann, mas não adoptou
a sua subtileza que não confunde o monoteísmo com a violência.
Para este, a questão real não consiste em universalizar a
aliança entre religião e violência, mas antes tentar impedi-la e
ultrapassá-la: "A meus olhos, o debate contemporâneo sobre as
questões da religião e da violência sofre de uma falta de
precisão que prejudica estes conceitos. O que procurei fazer
neste ensaio foi delimitar e isolar o fenómeno da violência
religiosa: em primeiro lugar, distinguindo-o de outras formas de
violência e, depois, historicizando-o, isto é, reconduzindo-o ao
seu contexto histórico de origem. O que me interessa é
desactivar, de certa maneira, alguns textos que, nas mãos de
fundamentalistas, podem, a qualquer momento, fazer explodir
barris de pólvora. Em vez de a tornar serva da política, a
religião ganharia em se entender como um contrapoder face à
política. A sua força não deveria estar na violência, mas no
abandono consequente da violência. Vejo o impulso original do
monoteísmo bíblico na sua capacidade de traçar uma fronteira
entre a dominação e a salvação, entre o poder político e o poder
divino e em despojar os chefes mundanos da salvação e os chefes
religiosos da violência. É este impulso, seguramente inscrito no
cristianismo - sobre este ponto estou de acordo com René Girard
- que nunca foi realizado e que é preciso activar, hoje, de
forma consequente." (2)
Segundo este historiador, a violência religiosa não está
inscrita na sua natureza e é, em última instância, uma
contradição nos termos. A violência pertence ao campo da
política, não ao da religião. Uma religião que se apodera da
violência fica concentrada no domínio da política - impensável
sem violência - e falha a sua verdadeira função neste mundo,
cuja força deve ser a não-violência. É preciso despolitizar
radicalmente as religiões monoteístas para libertar os seres
humanos da omnipotência do cosmos, do Estado, da sociedade ou de
qualquer outro sistema com pretensões totalitárias.
3.A força da religião deve ser, sem dúvida, a da não-violência.
Para aí chegar, é preciso uma longa peregrinação. Essa é a do
diálogo inter-religioso. Anselmo Borges acaba de publicar, sobre
esta problemática, um livrinho que é, verdadeiramente, uma
obra-prima (3). Se me irrita o prazer que alguns jornalistas
manifestam em situar Portugal na cauda da Europa, não escondo
que também me irrita a ignorância que observo, entre nós, na
abordagem do fenómeno religioso. Já não há desculpa. Gostaria
que este livro de bolso fosse a companhia de todos os que
desejam saber do que falam, quando falam de religião. |