FREI BENTO DOMINGUES, O.P.

 

 

Despolitizar as religiões
 

Público, Lisboa, 12 de Setembro de 2010

1. As celebrações religiosas sem emoção são uma seca, mas uma religião dominada, apenas, por fluxos emocionais cai na cegueira fundamentalista. A fórmula "fé e razão" - fé viva e razão inteligente - é uma proposta saudável de mútuo estímulo e de vigilância recíproca. Tornou-se, no entanto, recorrente falar da troca das grandes Igrejas clássicas, católicas ou protestantes, formalistas, doutrinais e dogmáticas, pelas Igrejas pentecostais e novos movimentos religiosos com narrativas de doenças e respectivas curas milagrosas, sublinhadas com música estridente.

Serão, todavia, respostas adequadas aquelas que copiam as práticas das Igrejas protestantes americanas, como fez, por exemplo, o católico filipino Mariano Velarde, lançando, a sul de Manila, o movimento chamado "El Shaddai"? Fundado em 1980, reúne mais de oito milhões de fiéis. É o maior e mais discutido movimento religioso do arquipélago e já construiu um dos maiores templos de toda a Ásia. Não me parece que seja esse um grande exemplo de imaginação criadora perante os desafios que as mudanças culturais e religiosas pedem aos movimentos católicos, seja em que país for. Depois da euforia da moda, virá a depressão.

2. A Europa emancipada da influência cristã teme, agora, o "regresso da religião" confundido com as ameaças do fundamentalismo islâmico. Esquece a complexidade do fenómeno religioso. As religiões, como diz o historiador F. Diez de Velasco, são sistemas culturais e simbólicos que oferecem explicações do mundo que potenciam a estabilidade, mas também podem veicular forças de desarticulação. Apostam na paz, mas também utilizam a violência, sustentam a concórdia e a revolta. Aliás, as religiões não são apenas diversas, são também multifuncionais e manifestam-se na multiplicidade de experiências e de âmbitos, desde o individual e familiar - onde o culto é dirigido pelo pai ou pela mãe - até ao universal, passando pelo étnico, o imperial e o nacional (1).

Este panorama não diz a razão desses contrastes. Muitos dos que desejariam ver o fim das religiões julgam-nas, apenas, factores de violência que querem substituir por uma teoria universal da civilização. Peter Sloterdijk termina o seu livro sobre a "Loucura de Deus", isto é, sobre o combate dos três monoteísmos, com uma nova confissão: "Repito-o como um credo e desejo que tenha suficiente energia para se propagar mediante línguas de fogo: o caminho da civilização é o único que ainda está em aberto."

Inspirou-se num grande egiptólogo, Jan Assmann, mas não adoptou a sua subtileza que não confunde o monoteísmo com a violência. Para este, a questão real não consiste em universalizar a aliança entre religião e violência, mas antes tentar impedi-la e ultrapassá-la: "A meus olhos, o debate contemporâneo sobre as questões da religião e da violência sofre de uma falta de precisão que prejudica estes conceitos. O que procurei fazer neste ensaio foi delimitar e isolar o fenómeno da violência religiosa: em primeiro lugar, distinguindo-o de outras formas de violência e, depois, historicizando-o, isto é, reconduzindo-o ao seu contexto histórico de origem. O que me interessa é desactivar, de certa maneira, alguns textos que, nas mãos de fundamentalistas, podem, a qualquer momento, fazer explodir barris de pólvora. Em vez de a tornar serva da política, a religião ganharia em se entender como um contrapoder face à política. A sua força não deveria estar na violência, mas no abandono consequente da violência. Vejo o impulso original do monoteísmo bíblico na sua capacidade de traçar uma fronteira entre a dominação e a salvação, entre o poder político e o poder divino e em despojar os chefes mundanos da salvação e os chefes religiosos da violência. É este impulso, seguramente inscrito no cristianismo - sobre este ponto estou de acordo com René Girard - que nunca foi realizado e que é preciso activar, hoje, de forma consequente." (2)

Segundo este historiador, a violência religiosa não está inscrita na sua natureza e é, em última instância, uma contradição nos termos. A violência pertence ao campo da política, não ao da religião. Uma religião que se apodera da violência fica concentrada no domínio da política - impensável sem violência - e falha a sua verdadeira função neste mundo, cuja força deve ser a não-violência. É preciso despolitizar radicalmente as religiões monoteístas para libertar os seres humanos da omnipotência do cosmos, do Estado, da sociedade ou de qualquer outro sistema com pretensões totalitárias.

3.A força da religião deve ser, sem dúvida, a da não-violência. Para aí chegar, é preciso uma longa peregrinação. Essa é a do diálogo inter-religioso. Anselmo Borges acaba de publicar, sobre esta problemática, um livrinho que é, verdadeiramente, uma obra-prima (3). Se me irrita o prazer que alguns jornalistas manifestam em situar Portugal na cauda da Europa, não escondo que também me irrita a ignorância que observo, entre nós, na abordagem do fenómeno religioso. Já não há desculpa. Gostaria que este livro de bolso fosse a companhia de todos os que desejam saber do que falam, quando falam de religião.

(1) Francisco Diez de Velasco. Breve Historia de las Religiones, Madrid. Alianza Editorial, 2008. p. 17

(2) Jan Assmann, Violence et Monothéisme, Paris, Bayard, 2009, pp. 9-10.

(3) Religião e Diálogo Inter-Religioso, Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010.
 

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