1. Apresentaram-me, há dias, um católico
fervoroso de uma maneira curiosa: “este não é um cristão de
aviário; foi ele que pediu, aos 35 anos, para ser baptizado”.
Não achei nada de estranho.
No começo do Cristianismo, o Baptismo nasceu para celebrar a
conversão de milhares de adultos. É, ainda hoje, a prática
corrente em muitos países. Mesmo na velha Europa, incluindo
Portugal, por motivos e caminhos muito diversos, o Baptismo já
não é só pedido para crianças.
Em caso nenhum, porém, se pode falar de cristãos de aviário.
Tertuliano (155-222), um tunisino convertido, o primeiro grande
intelectual cristão, cunhou uma fórmula exemplar: “ninguém nasce
cristão, torna-se cristão”. Mesmo aqueles que recebem o Baptismo
em criança celebram o começo de uma caminhada, não o de uma
fatalidade.
O termo português baptismo é a transliteração do grego baptismō
e significa banho, associado aos verbos: mergulhar, lavar,
derramar. A partir dessa realidade empírica e simbólica assumiu,
no plano religioso, o sentido de purificação e de nova vida.
A grande dificuldade, no próprio imaginário de muitas iniciações
ao Baptismo cristão, consiste em tomar como seu antecedente
directo o Baptismo que João ministrou a Jesus no rio Jordão.
É verdade que Jesus de Nazaré levou, como homem, muito tempo a
encontrar o seu próprio caminho e a sua missão. Foi discípulo de
João Baptista, de quem nunca disse mal, antes o elogiou como a
ninguém, mas desligou-se dele e escolheu outro género de vida. O
que marcou a originalidade de Jesus não foi o Baptismo de João.
Qual terá sido, então, a experiência que o fez romper com esse
grande profeta?
S. Lucas – assim como os outros evangelistas – contam o que se
passou: tendo Jesus sido baptizado, e estando em oração, o Céu
rasgou-se; o Espírito Santo desceu sobre Ele em forma corpórea,
como uma pomba. Do Céu veio uma voz: «Tu és o meu Filho muito
amado; em ti me comprazo» (Lc 3, 21-22).
Foi esta experiência mística, foi este banho de Espírito Santo,
que alterou o rumo da sua vida. É a partir daqui que se pode
falar de antes e depois de Cristo. Lucas vai dizê-lo, de forma
explícita: A Lei e os profetas até João. Daí em diante, é
anunciada a Boa Nova do Reino de Deus. O IV Evangelho ainda é
mais incisivo: A Lei foi dada por meio de Moisés; a graça e a
verdade nos vieram por Jesus Cristo (Jo 1, 15-34).
2. As Igrejas de Jesus Cristo ressuscitado são fruto do
Pentecostes. Pelo menos, é assim que são apresentadas, de muitas
maneiras, pelos Actos dos Apóstolos. Os primeiros convertidos
perguntaram a Pedro e aos apóstolos: Irmãos, que devemos fazer?
A resposta já resume, sem dúvida, práticas simbólicas das
comunidades cristãs: Convertei-vos e seja cada um de vós
baptizado em nome de Jesus Cristo, para a remissão dos pecados e
recebereis, então, o dom do Espírito Santo (Act 2, 37-38). Um
ritual é um programa de acção simbólica. Deus, porém, não está
dependente dos rituais. Estes não são a única forma da sua
actuação, não têm o exclusivo da sua graça. Nos capítulos 10 e
11, conta-se que, sem ritual nenhum, enquanto Pedro falava, o
Espírito Santo – sem lhe pedir licença – caiu sobre todos os que
ouviam a palavra e concluiu com muito bom senso: Pode-se
porventura, recusar a água do Baptismo a esses que, como nós,
receberam o Espírito Santo? Este desembaraço, em Cesareia,
criou-lhe muitos problemas, em Jerusalém, onde foi obrigado a
justificar-se perante judeus circuncisos, que não admitiam que o
Espírito de Deus andasse à solta entre os pagãos. Convém não
esquecer que antes, durante e depois da acção ritual é em Deus
que vivemos, nos movemos e existimos. As acções simbólicas não
existem para provocar a acção de Deus, mas para nos abrirmos à
sua intervenção. Para justificar os sacramentos, temos a
tendência em restringir a acção de Deus, anexando-a aos rituais,
esquecendo que somos nós, seres simbólicos por natureza, que
precisamos dessas mediações, que não podem encurtar a divina
liberdade.
3. Consta de uma homilia de S. Gregório, bispo de Nisa (século
IV), a seguinte oração baptismal: “Eu te marco em nome do Pai,
do Filho e do Espírito Santo, para que sejas cristão: os olhos,
para que vejas a luz de Deus; os ouvidos, para que ouças a voz
do Senhor; o nariz, para que percebas o suave odor de Cristo; os
lábios, para que, uma vez convertido, confesses o Pai, o Filho e
o Espírito Santo; o coração, para que creias na Trindade
indissolúvel. O Verbo santificou-nos, o Espírito marcou-nos; o
homem novo saiu ao mundo encontrando de novo a sua juventude
pela graça”.
Que não pode haver “cristãos de aviário” é o próprio ritual do
baptismo da criança que o diz. Os pais e padrinhos
comprometem-se a realizar um programa de educação, em liberdade,
num mundo em transformação. Se proclamam que não vale tudo, é
preciso não se deixar enganar pelas seduções do mal sempre com
novos rostos. Sem a descoberta permanente de Cristo, como fonte
de sentido, de beleza, de responsabilidade e sem a força da sua
graça é impossível ser fiel a esse programa numa vida em devir. |