1.
As edições Paulinas abriram uma colecção designada “Sabedoria
Cristã”, permitindo ao cristianismo respirar a dois pulmões,
como desejava João Paulo II: o da Igreja do Oriente e o da
Igreja do Ocidente. Já saíram várias obras essenciais. A quarta
é constituída pelos “Tratados e Sermões” de Mestre Eckhart
(1260-1328), com prefácio do Prof. Paulo Borges e introdução de
Fr. José Luís de Almeida Monteiro, O.P. Com outro volume de
“Introdução a Mestre Eckhart”, de Michael Demkovich, procura-se
recuperar, ainda que tardiamente, a voz deste grande místico
ignorado em Portugal.
O grande especialista do
pensamento medieval, Alain De Libera (1) – que vou seguir neste
texto – sustenta que a filosofia alemã, nos séculos XIII e XIV,
estava inteiramente concentrada na Ordem dos Pregadores. Alberto
Magno († 1280) era alemão por nascimento e carreira. As suas
ideias, porém, eram parisienses. Os filósofos alemães eram
discípulos de Alberto Magno, formados por ele, em Colónia, no
Studium Dominicano ou dependentes das suas teses.
O mais famoso dos discípulos
foi Mestre Eckhart, filósofo, teólogo, místico e dotado de
grande capacidade prática. Foi prior, provincial, vigário geral,
professor na Sorbonne de Paris e em Colónia. É considerado o
maior místico da Idade Média. A sua influência atravessou os
séculos e as culturas, uma ponte entre o Ocidente e o Oriente.
M. Heidegger aludia ao “velho mestre, de quem aprendemos a ler e
a viver”. Continua a marcar a sua presença nas investigações
feministas, sufistas e budistas, nos seguidores da New Age
e, com redobrado fascínio, entre escritores cristãos de várias
tendências.
2.
Este místico é também aclamado
como “pai da especulação alemã”. Foi condenado a 27 de Março de
1329 por um dos Papas de Avinhão, João XXII. Apesar de todas as
censuras e reprovações, ler hoje Mestre Eckhart é continuar a
beber numa fonte de água viva. É, também, uma escola, pois
Eckhart teve discípulos imediatos de grande envergadura:
Henrique Suso e João Tauler. Com ele, legaram ao cristianismo
uma das suas mais altas e exigentes expressões, uma teologia
contemplativa e prática, cujas palavras-chave são a “deificação”
e o “desprendimento”, marcas da mística renana.
Durante uns sessenta anos, no
século XIV, no vale do Reno, na região de Colónia e de
Estrasburgo, viveu, pregou, escreveu e meditou uma
extraordinária geração de homens chamados místicos renanos.
Pertenciam os três – Eckhart, Suso e Tauler – à Ordem
Dominicana. Eram intelectuais: Eckhart era o terceiro alemão com
o título de Mestre em Teologia, pela universidade de Paris, a
maior distinção intelectual que se podia imaginar naquela época.
Os outros eram seus alunos e discípulos. Entre 1300 e 1360,
esses três irmãos mendicantes transformaram o modo de pensar e
de viver o cristianismo, inventando um tipo de intelectual que o
mundo medieval não tinha conhecido até então: o de “mestre de
leitura” que fosse, também, e em primeiro lugar, “mestre de
vida”.
3.
Na Idade Média, sempre houve
espirituais e sábios. Na época das Universidades – a partir dos
anos 1200 – existiam intelectuais, profissionais do pensamento,
numa palavra, “clérigos”. Com Eckhart, Suso e Tauler surge outra
realidade. Pela primeira vez, teólogos profissionais pregavam,
ensinavam e orientavam, falando na língua dos leigos, perante
auditórios de não profissionais que ignoravam tanto a filosofia
como a teologia sistemática. Popularizaram, ou melhor dito,
desprofissionalizaram a sabedoria cristã. Dirigiam-se ao mundo
dos “simples”.
Este novo destinatário do saber
e da fé em busca de inteligência não era fruto de uma iniciativa
pessoal, fazia parte da sua missão de irmãos pregadores.
Tratava-se, sobretudo numa época de intensa vida religiosa, de
conduzir um imenso mundo de mulheres, monjas ou beguinas, pelos
caminhos da verdadeira doutrina. De facto, a espiritualidade
feminina era, na altura, tão florescente que inquietava o
magistério. A singularidade dos três pregadores consistiu em ter
cumprido a sua função, colocando-se na escola do seu auditório,
aprendendo com o seu contacto e aceitando e vivendo todas as
suas consequências.
Era duro e sofredor o mundo em
que viveram: o papado estava em guerra ideológica com o império;
a peste começava a assolar a Alemanha; queimavam-se os livros e,
por vezes, os seus autores. Era uma época de censura e de
condenações. No entanto, era também uma época de discussões e de
pôr em causa velhos saberes. Tempo
de G. Occam e do nominalismo, do florescimento da lógica
e da nova física. Tempo, também, de espirituais, da contestação
no seio da Igreja, da reivindicação de uma forma de vida
evangélica inspirada na pobreza dos primeiros cristãos, de
Cristo e dos apóstolos.
A posteridade tão
diversificada, por vezes contraditória, desta escola – no campo
da filosofia, da teologia, da espiritualidade e da mística – já
começou a ser estudada por Alain De Libera, com muitas outras
colaborações (2). Quais serão, porém, as razões da atracção que
continua a exercer em novos estilos de espiritualidade e de
teologia, no Oriente e no Ocidente?