Frei Bento Domingues, o.p.

 

Evangelho e cultura

na Semana Santa
 

Público, Lisboa, 28 de Março de 2010

1. O cristianismo não nasceu in vitro, como resultado artificial de laboratório, nem caiu do céu como um meteorito. Para entender o sentido dos acontecimentos que a Semana Santa cristã celebra, é preciso recorrer aos textos do Novo Testamento. Estes, por sua vez, tiveram de recorrer a certas passagens do Antigo Testamento para descobrirem a significação do escândalo vivido pelos apóstolos perante a morte do seu Mestre. Sendo assim, o cristão não pode dispensar o conhecimento de toda a Bíblia, tida por mensagem divina em palavras humanas. Para afirmar a originalidade do Evangelho de Jesus Cristo – Evangelho do amor e da misericórdia – um teólogo gnóstico da Ásia Menor, Marcião (81-160), recusou o Antigo Testamento que, para ele, era obra de um Deus mau e vingativo. Com esta atitude, mostrava que não conseguia entender que a Bíblia fosse retrato de vários mundos e espelho da condição humana no que tem de melhor e de pior.

Hoje, quem olha só para as capas da Bíblia não se dá conta que está perante uma pequena biblioteca, muito variada sob todos os pontos de vista. Figuram nela, sobretudo no Antigo Testamento, os diferentes géneros literários correntes entre os povos do Próximo Oriente, especialmente entre os povos semitas, no primeiro milénio antes de Cristo. Os livros que a constituem foram escritos em várias línguas (hebraico, aramaico e grego), em vários países (Palestina, Egipto e Babilónia) e, tendo em conta os textos do Novo Testamento, durante mais de um milénio.

2. A marca desta literatura não é a unidade, mas a diversidade. O acrónimo hebraico – Tora-Nebî’îm-Ketubîm, isto é, Lei-Profetas-Escritos, uma das designações correntes das Escrituras judaicas – exprime melhor a sua variedade do que a simples e a habitual expressão cristã Antigo Testamento. O sentido de unidade é, em grande parte, o resultado das suas leituras confessionais, sejam elas cristãs ou judaicas. Quando se não tem isto em conta, resvala-se para um mundo de contradições que nenhum concordismo pode salvar.

A diversidade que caracteriza o Antigo Testamento reflecte a realidade histórica dos sucessivos grupos humanos que nele se expressam. A ideia de um Israel protagonista de toda a história veterotestamentária é uma criação dos autores bíblicos. A variedade do Antigo Testamento não se deve só às mudanças que se deram no decorrer do tempo, entre os começos dos dois reinos hebraicos e o judaísmo dos últimos séculos da era pré-cristã. Muitos dos seus textos representam as posições de grupos particulares que se expressam ora de forma conciliadora, ora de forma polémica. A diversidade manifesta-se de maneira flagrante, no campo religioso e, em concreto, na teologia propriamente dita. No Antigo Testamento há diversas perspectivas religiosas e diferentes concepções de Deus que até estiveram em concorrência. Da concepção de Deus que professava cada grupo dependiam as ideias que ele tinha de si próprio e das instituições nacionais (1).

3. Em Portugal, desde algumas décadas, foi desenvolvido um certo esforço de iniciação à leitura da Bíblia. No entanto, o contacto mais frequente com essa literatura acontece nos textos seleccionados para a celebração da Missa. Essa escolha é exagerada para um tempo tão reduzido dedicado a cada celebração. Por outro lado, poucas são as boas escolas de leitores. A ponte entre elas e as experiências das comunidades – tarefa da homilia – raramente atinge o seu objectivo.

Fui, recentemente, envolvido numa comovente experiência bíblica. Em Barcelos, o pároco de Santa Maria Maior, Abílio Cardoso – conhecido pelas suas iniciativas pastorais inteligentes e imaginativas – teve mais uma ideia, não só inspirada, mas inspiradora. No ano passado, a Bíblia foi tratada, como se sabe, por José Saramago com grande alarido nos meios de comunicação. O Padre Abílio Cardoso com os seus colaboradores, em vez de alimentar polémicas, aproveitou a ocasião para estudar o modo de libertar a Palavra divina presa ao passado, aos “lugares sagrados” e de levar a Bíblia – voz de muitas vozes – para a rua, para os chamados espaços profanos, onde ela não tem só algo de essencial a dizer, mas também muito que ouvir dos católicos não praticantes, dos agnósticos e dos ateus.

O programa, servido por um marketing nada agressivo, muito simples e eficaz, desenvolveu-se durante uma semana inteira: de 7 a 14 de Março. Praças públicas, ruas, cafés, auditórios foram lugares para tempos muito criativos de interpelação, de diálogo, de conhecimento partilhado, em clima descontraído e festivo. Um acontecimento.

Em muitos lugares de Portugal, na Semana Santa, as ruas e as praças eram percorridas por manifestações impressionantes. Precisavam e precisam, certamente, de uma recriação que exprima, de novo, o Evangelho da esperança. A sede de espiritualidade, seja em antigas ou em novas formas culturais, não desapareceu.

Tanta música, tanta poesia, tantas formas de arte que nos podem levar às fronteiras do inexprimível e que, por receio de velhos fantasmas, insistimos em ocultar ou reprimir. No entanto, aí vive a matriz mais sólida e profunda da nossa cultura.

(1) Cf. Francolino Gonçalves, O messianismo no Antigo Testamento, in Cadernos ISTA, nº 14 (2002), pp. 47-89.

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