Frei Bento Domingues, o.p.

 

A boa medida em religião

Público, Lisboa, 28 de Fevereiro de 2010

    1. Em Viseu há uma estátua em homenagem ao bispo António Alves Martins (1808-1882). Foi franciscano, deputado, enfermeiro-mor no Hospital de S. José, ministro do Reino e bispo de Viseu. Na referida estátua, é-lhe atribuída a seguinte receita: “A religião deve ser como o sal na comida: nem muito nem pouco, só o preciso”.

    S. Mateus (6, 7-8) atribui a Jesus um conselho que não está longe deste bispo: Nas vossas orações não useis de vãs repetições, como fazem os gentios, porque entendem que é pelo palavreado excessivo que serão ouvidos. Não sejais como eles, porque o vosso Pai sabe do que tendes necessidade antes de lhe pedirdes.

    Os discípulos não gostaram muito desta atitude. Jesus afastava-se para rezar, mas eles queriam competir com outros grupos religiosos que tinham os seus métodos de oração e não havia maneira de Jesus lhes oferecer algo que pudessem repetir. Quereis rezar? Rezai com insistência, mas só para vos abrirdes ao Espírito Santo, o grande desestabilizador (Lc 11, 1-13). S. Paulo dá-lhe razão, ninguém sabe pedir com acerto, só o Espírito entende os caminhos de Deus (Rm 8, 26-27).

    O recato e a sobriedade de Jesus nunca foram bem aceites. Os cristãos não abandonaram os salmos da Bíblia hebraica, muitos deles de grande beleza poética e energia religiosa, outros, insuportáveis pelo seu rancor e vontade de vingança.

    Época após época e segundo os contextos culturais absorveram e inventaram novos métodos para “manipular a divindade”. Os grandes místicos não paravam nessas estações e apeadeiros das orações e ansiavam pela contemplação silenciosa. Todas as religiões têm místicos, mas são sempre raros. Muitas delas preferem encontrar intermediários para meter cunhas junto de Deus.

    No campo católico, nossa Senhora, “mãe de Jesus e nossa mãe”, foi sempre considerada a mais bem situada para medianeira de todas as graças. Por isso, a música e a poesia marianas, em tropários, ladainhas, hinos, rosários e promessas, nunca abandonaram católicos e ortodoxos. Os santos foram sempre mais regionais e de grupo, salvo Santo António que serve para tudo, para todos e em qualquer lugar com ou sem franciscanos.

    2. Os monges que viviam em comunidades de oração e trabalho (ora & labora) como, por exemplo, os beneditinos, compuseram Livros das Horas, colecção de textos, orações e salmos, muitas vezes acompanhados de belíssimas iluminuras que depois tiveram versões mais práticas e portáteis, os Breviários. Tudo isso era em latim. Para os analfabetos e para o povo, o importante era arranjar devocionários que servissem para pautar a oração, pregada e meditada, dos mistérios cristãos. Entre outras, a devoção do Rosário, divulgada pelos dominicanos, foi a que teve mais êxito. Ainda no século XX, Nossa Senhora apresentou-se, em Fátima, como a Senhora do Rosário, recomendando, mais uma vez, esta devoção.

    Os tempos mudam, as mentalidades e as sensibilidades também. As religiões – umas mais do que outras – não fogem a esta lei. Para uns é um sinal de decadência, para outros, uma nova oportunidade, uma esperança.

    Uma máxima de Romano Guardini (1885-1968) – um grande pensador católico que muito reflectiu sobre o espírito da oração e da liturgia – tornou-se a referência obrigatória: “Não se pode ser cristão sem rezar da mesma maneira que não se pode viver sem respirar”.

    Michel Quoist, com os Poemas para Rezar, traduzidos em muitas línguas, mais do que uma recomendação, eram um recurso, individual e de grupo, substituindo salmos e velhas devoções cansadas.

    Com a reforma litúrgica – oficializada no Vaticano II –, com a tradução para vernáculo dos seus textos, com novas expressões musicais, o panorama mudou de forma diferente, segundo os países, sem falar das cançonetas que invadiram as Missas ao som da viola mal tocada. Com o tempo, surgiram alternativas de grande qualidade como as criações do dominicano André Gouzes, o artesão de uma renovação do canto litúrgico. A Liturgia coral do povo de Deus é um corpo litúrgico de mais de 3 mil páginas em francês, traduzido e editado em numerosas línguas, enraizado e renovado nas mais autênticas tradições musicais do cristianismo (canto gregoriano, polifonia antiga, coral protestante e modalidade bizantina).

     A oração da Comunidade de Taizé, pela qualidade dos textos, pela beleza da música, pela simplicidade ritual, criou um clima espiritual onde milhares de jovens de muitos países, ano após ano, descobrem o gosto do silêncio, da oração e da partilha.

    Sem falar das “Oficinas de Oração e Vida”, criadas pelo capuchinho Ignácio Larrañaga, em 1984, para ensinar o povo a rezar, importa saudar também a renovação do Apostolado da Oração, promovido pelos jesuítas, com o projecto www.passo-a-rezar.net. Procura adaptar a proposta de oração pessoal às circunstâncias da vida de todos os dias e à exigência de mobilidade que a caracteriza.

    A oração nasce do encontro com o sentido da vida. A magia não  é a lei da sua eficácia. Para ser contemplativo na acção, não é necessário multiplicar as orações. É preciso deixar-se desarmar diante de Deus e do mundo, deixar-se surpreender pela sua graça e pela sua beleza.

 
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