1.No momento em que escrevo, ainda é cedo para procurar
os frutos da viagem do Papa à chamada Terra Santa, lugar da
desautorização espiritual das consideradas religiões
abraâmicas – judaísmo, cristianismo e islão – ao pretenderem
testemunhar todas do verdadeiro Deus umas contra as outras.
Religiões supostamente anti-idolátricas que, cultivando a
idolatria daquela terra, daquelas pedras, rios, lagos,
mares, árvores, montanhas, muros antigos e recentes,
monumentos sagrados, vão construindo um barril de pólvora
sempre pronto a explodir. Pela serenidade das notícias, não
deve ter havido nada que pudesse ser transformado, pelos
grandes meios de comunicação social, num escândalo
político-religioso. Dado o clima crispado que antecedeu a
viagem, esta serenidade é um bom sinal.
2. Se a ignorância é sempre atrevida, parece que acerca
das religiões até fica bem: basta ir numa excursão à Índia
para ficar a saber tudo acerca de milénios de sabedorias e
loucuras e adivinhar o seu futuro; uma peregrinação à Terra
Santa é suficiente para descobrir as pegadas históricas de
Jesus e outra pelos lugares referenciados nas Cartas de S.
Paulo para ficar a conhecer, profundamente, os ziguezagues
do seu pensamento. Se estudar era uma “veemente aplicação da
mente”, a estes peregrinos basta-lhes uma olhadela rápida
com tempo para a fotografia.
Hoje, quero chamar a atenção para algumas edições
Paulinas. Não se contentaram com a tradução de obras sobre
S. Paulo e sobre Jesus e Paulo (sobretudo, as de J. Murphy-O’Connor
e de Peter Walker). Apresentaram-nos, também, Jesus Hoje.
Uma espiritualidade de liberdade radical, de Albert Nolan,
um dominicano da África do Sul. Livro tão belo e sugestivo
que é impossível não recomendar. Na colecção Sabedoria
Cristã, com a marca de um estilo de espiritualidade que nada
tem a ver com as mediocridades da New Age, onde tinham sido
publicados três títulos importantes, surgiu agora uma obra
que representa uma pura novidade no cenário cultural,
teológico e espiritual do nosso país. Trata-se nada menos de
alguns Tratados e Sermões de Mestre Eckhart (1260?-1328),
filósofo, teólogo, pregador dominicano e, sobretudo, um
grande místico, muito discutido desde o século XIV até à
actualidade, dentro e fora do espaço eclesial. Apresentado,
agora, como um incontornável mediador do diálogo entre o
Ocidente cristão e as tradições místicas orientais, este
autor proibido na teologia tornou-se, pela mão de M.
Heidegger, uma referência da filosofia alemã.
Não é uma obra para almas apressadas nem para
consolações imediatas. Quando se fala de acreditar ou não
acreditar em Deus, a primeira pergunta é esta: em que Deus
estás a pensar? Se a pergunta é atrevida, a resposta é
perigosa. Não podemos pensar sem imagens, sem metáforas, sem
conceitos. Para responder, através de imagens e metáforas, é
importante saber quais são as que ajudam a viajar para o
infinito e aquelas que já estão fixadas como objectos. É
conhecida a observação: quando se aponta para o céu, o
estúpido olha para o dedo. Há metáforas vivas e metáforas
mortas: o sopé da montanha, as pernas da mesa ou da cadeira,
de metáforas já não têm nada. O jogo simbólico e metafórico
salva-nos pela sua capacidade poética de abrir horizontes
sem contornos definidos, um viajar permanente da
inteligência e da imaginação. Fazer de Deus um ente, nem que
seja o Ente Supremo, não o deixa saltar para fora dos
conceitos. Mas um Deus que coubesse num conceito era mais
pequeno do que esse conceito, era um ídolo, um fabrico da
mente. Mestre Eckhart obriga o espírito a um salto para lá
de todos os conceitos e de todas as representações. A Deus
não se vai, porém, de abstracção em abstracção, mas pelo
despojamento absoluto e pela entrada na divindade, presente
em tudo, não se confundindo com nada, sem nome adequado para
a nomear: o fundo sem fundo de toda a realidade.
3. Há muitos livros que gostava de ver traduzidos em
português. Referi-me, no ano passado, a Hablemos de Dios de
Victoria Camps e Amelia Valcárcel. Estas duas catedráticas
de Ética elaboraram uma obra muito original sobre as
peripécias da religião, especialmente do catolicismo, no
devir do processo democrático espanhol. O movimento Nós
Somos Igreja tomou a iniciativa de convidar as autoras para
dar a conhecer essa obra em Portugal. Foram acolhidas no
Centro Nacional de Cultura. Pena foi que os meios de
comunicação social não tivessem compreendido a importância
de uma problemática fundamental que – entre nós e por
motivos opostos – católicos e agnósticos preferem ignorar.
Os textos da liturgia deste Domingo fazem parte da
constituição da originalidade cristã. Dizem que só lhe
pertence o que serve a nossa alegria. Deus não faz acepção
de pessoas, seja qual for a sua religião ou cultura, porque
o amor que Deus lhes tem é incondicional e o seu mandamento
é insubstituível: amai-vos uns aos outros. Que terá
acontecido para que a alegria não seja o rosto das Igrejas
cristãs, tantas vezes, coberto por normas e ritos de
exclusão e de tristeza?
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