Frei Bento Domingues, o.p.

 

A raiz da alegria
 

Público, Lisboa, 17.05 09

    1.No momento em que escrevo, ainda é cedo para procurar os frutos da viagem do Papa à chamada Terra Santa, lugar da desautorização espiritual das consideradas religiões abraâmicas – judaísmo, cristianismo e islão – ao pretenderem testemunhar todas do verdadeiro Deus umas contra as outras. Religiões supostamente anti-idolátricas que, cultivando a idolatria daquela terra, daquelas pedras, rios, lagos, mares, árvores, montanhas, muros antigos e recentes, monumentos sagrados, vão construindo um barril de pólvora sempre pronto a explodir. Pela serenidade das notícias, não deve ter havido nada que pudesse ser transformado, pelos grandes meios de comunicação social, num escândalo político-religioso. Dado o clima crispado que antecedeu a viagem, esta serenidade é um bom sinal.
 
    2. Se a ignorância é sempre atrevida, parece que acerca das religiões até fica bem: basta ir numa excursão à Índia para ficar a saber tudo acerca de milénios de sabedorias e loucuras e adivinhar o seu futuro; uma peregrinação à Terra Santa é suficiente para descobrir as pegadas históricas de Jesus e outra pelos lugares referenciados nas Cartas de S. Paulo para ficar a conhecer, profundamente, os ziguezagues do seu pensamento. Se estudar era uma “veemente aplicação da mente”, a estes peregrinos basta-lhes uma olhadela rápida com tempo para a fotografia.
 
    Hoje, quero chamar a atenção para algumas edições Paulinas. Não se contentaram com a tradução de obras sobre S. Paulo e sobre Jesus e Paulo (sobretudo, as de J. Murphy-O’Connor e de Peter Walker). Apresentaram-nos, também, Jesus Hoje. Uma espiritualidade de liberdade radical, de Albert Nolan, um dominicano da África do Sul. Livro tão belo e sugestivo que é impossível não recomendar. Na colecção Sabedoria Cristã, com a marca de um estilo de espiritualidade que nada tem a ver com as mediocridades da New Age, onde tinham sido publicados três títulos importantes, surgiu agora uma obra que representa uma pura novidade no cenário cultural, teológico e espiritual do nosso país. Trata-se nada menos de alguns Tratados e Sermões de Mestre Eckhart (1260?-1328), filósofo, teólogo, pregador dominicano e, sobretudo, um grande místico, muito discutido desde o século XIV até à actualidade, dentro e fora do espaço eclesial. Apresentado, agora, como um incontornável mediador do diálogo entre o Ocidente cristão e as tradições místicas orientais, este autor proibido na teologia tornou-se, pela mão de M. Heidegger, uma referência da filosofia alemã.
 
    Não é uma obra para almas apressadas nem para consolações imediatas. Quando se fala de acreditar ou não acreditar em Deus, a primeira pergunta é esta: em que Deus estás a pensar? Se a pergunta é atrevida, a resposta é perigosa. Não podemos pensar sem imagens, sem metáforas, sem conceitos. Para responder, através de imagens e metáforas, é importante saber quais são as que ajudam a viajar para o infinito e aquelas que já estão fixadas como objectos. É conhecida a observação: quando se aponta para o céu, o estúpido olha para o dedo. Há metáforas vivas e metáforas mortas: o sopé da montanha, as pernas da mesa ou da cadeira, de metáforas já não têm nada. O jogo simbólico e metafórico salva-nos pela sua capacidade poética de abrir horizontes sem contornos definidos, um viajar permanente da inteligência e da imaginação. Fazer de Deus um ente, nem que seja o Ente Supremo, não o deixa saltar para fora dos conceitos. Mas um Deus que coubesse num conceito era mais pequeno do que esse conceito, era um ídolo, um fabrico da mente. Mestre Eckhart obriga o espírito a um salto para lá de todos os conceitos e de todas as representações. A Deus não se vai, porém, de abstracção em abstracção, mas pelo despojamento absoluto e pela entrada na divindade, presente em tudo, não se confundindo com nada, sem nome adequado para a nomear: o fundo sem fundo de toda a realidade.
 
    3. Há muitos livros que gostava de ver traduzidos em português. Referi-me, no ano passado, a Hablemos de Dios de Victoria Camps e Amelia Valcárcel. Estas duas catedráticas de Ética elaboraram uma obra muito original sobre as peripécias da religião, especialmente do catolicismo, no devir do processo democrático espanhol. O movimento Nós Somos Igreja tomou a iniciativa de convidar as autoras para dar a conhecer essa obra em Portugal. Foram acolhidas no Centro Nacional de Cultura. Pena foi que os meios de comunicação social não tivessem compreendido a importância de uma problemática fundamental que – entre nós e por motivos opostos – católicos e agnósticos preferem ignorar.
 
    Os textos da liturgia deste Domingo fazem parte da constituição da originalidade cristã. Dizem que só lhe pertence o que serve a nossa alegria. Deus não faz acepção de pessoas, seja qual for a sua religião ou cultura, porque o amor que Deus lhes tem é incondicional e o seu mandamento é insubstituível: amai-vos uns aos outros. Que terá acontecido para que a alegria não seja o rosto das Igrejas cristãs, tantas vezes, coberto por normas e ritos de exclusão e de tristeza?
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