1.
Num debate televisivo sobre o
sacerdócio feminino
nas diversas religiões, deparei com o desenho de uma pirâmide para
mostrar a situação das mulheres na Igreja Católica. No cimo dessa
pirâmide, vinha o Papa, abaixo, os cardeais, mais abaixo ainda, os
bispos, seguiam-se, na descida, os padres e, na base da pirâmide,
vinham os diáconos. Ali, não havia mulheres. Estava tudo no
masculino.
O que mais me espantava, nesse desenho,
não era a evidente exclusão das mulheres desses lugares de poder.
Estava-se a debater, de forma comparativa, o papel das mulheres na
direcção das diferentes religiões, a nível global e local. Não vem
ao caso, agora, apreciar o que se passa nas outras religiões. No
campo cristão, há Igrejas nas quais a pirâmide do poder já conta com
presenças femininas e, com o evoluir da sociedade, será normal que,
na graduação do poder, as mulheres venham a ocupar todos os lugares.
Há quem diga que tempo virá, no qual será preciso, nessas Igrejas,
como nos partidos, parlamentos e governos, lutar por uma quota de
homens.
O insuportável, naquele gráfico, era a
tentativa de identificar a Igreja Católica, Apostólica, Romana com a
Hierarquia. Os esforços desenvolvidos, sobretudo ao longo do século
XX, para acabar com essa identificação – uma das maiores
reconquistas do Concílio Vaticano II (1962-1965) – parecia que não
tinham servido para nada.
Depois, mais a frio, pensei: não há
razões especiais para me irritar. Aquela pirâmide é, de facto, a
representação que continua a vigorar no imaginário de católicos e
não católicos. Quando se fala, bem ou mal, da Igreja – e não só nos
meios de comunicação social –, pensa-se no que dizem e fazem o Papa,
os bispos e os padres. Quem pensará que a Igreja é, em primeiro
lugar, constituída pela rede mundial de comunidades cristãs mais
densas ou mais raras, segundo os países e continentes? Compreendi,
então, que já Santo Agostinho (354-430) tivesse sentido a
necessidade de dizer: “para vós sou bispo, convosco sou cristão”. A
sua glória não estava em ser bispo, mas em ser cristão: alguém que a
graça do Espírito Santo transformara num discípulo de Cristo.
Porque será que, mesmo depois de toda a
ênfase posta pela Lumen Gentium
do Vaticano II, naquilo que é comum a todos os cristãos (nº10) e de
ter destacado que os vários ministérios da Igreja se destinam ao bem
de todo o corpo (nº 18), se continue a confundir a Igreja com a
Hierarquia e esta transformada numa hierarquia sacerdotal?
2.
A linguagem do sacerdócio nunca é utilizada, no Novo Testamento,
para designar os ministérios ou serviços da comunidade. A usada é de
carácter funcional para fazer ressaltar a sua diferença absoluta em
relação ao sacerdócio veterotestamentário ou gentio. Por isso, os
ministros das comunidades são designados como presbíteros (anciãos),
bispos (vigilantes), pastores, presidentes, chefes, dirigentes,
guias, etc.. A linguagem sacerdotal é aplicada só a Cristo, único
mediador (Carta aos Hebreus),
e, de forma colectiva, ao povo cristão, não para
oferecer a Deus sacrifícios “materiais”, mas a própria vida (Rm 12;
1Pd 2, 4-10).
A partir dos finais do século II,
voltou-se a utilizar, no cristianismo, a linguagem
veterotestamentária para designar os seus ministros, mas num sentido
analógico, metafórico ou, mais exactamente, tipológico. Depois, de
forma variável, desenvolveu-se a terminologia sacerdotal que vai
sacralizar os ministérios cristãos à maneira do Antigo Testamento,
como tendo parte no sagrado, no divino. Como diz o jesuíta, Joseph
Famerée, na época moderna, a partir da corrente espiritual francesa
de Pierre de Bérulle (1575-1629), far-se-á do padre um “outro
Cristo” como se, pela sua ordenação, tivesse sido ontologicamente
transformado num ser novo. Nesta identificação, é “transubstanciado”
num alter Christus,
num mediador necessário entre Deus-Cristo e os humanos.
Esta visão sacerdotalizante e ontológica
do padre é, para o autor citado, na linha de muitos outros,
inaceitável (1).
3.
Dir-se-á que, no referido documento conciliar, “o sacerdócio comum
dos fiéis e o sacerdócio ministerial ou hierárquico, apesar de
diferirem entre si essencialmente e não apenas em grau, ordenam-se
um para o outro mutuamente; de facto, ambos participam, cada qual a
seu modo, do sacerdócio único de Cristo”. Ao dizer “sacerdócio
comum”, poderia supor-se que a diferença essencial corre a favor do
chamado “sacerdócio ministerial ou hierárquico”. Erro grosseiro.
Como dizia Tomás de Aquino, o que há de mais importante, de mais
decisivo, no cristianismo, é precisamente o acolhimento da graça do
Espírito Santo, anterior a qualquer forma de ministério ordenado. É
ela que transforma a vida.
Na altura do Concílio, não foi possível
chegar a acordo para que “sacerdócio” ficasse como próprio de Cristo
e de todos os fiéis, como vem no Novo Testamento. O consenso
possível foi o da justaposição de duas Escolas.
Quem pode o mais também pode o menos,
isto é, se as mulheres podem ser cristãs, também poderão ser
chamadas, ao mesmo título que os homens, a exercer qualquer
ministério ordenado ou não, dentro da Igreja. Nem Deus nem Cristo
fazem acepção de pessoas. |