A pobreza por opção pode ter várias motivações, laicas e religiosas.
Na Igreja, a pobreza voluntária, individual ou de grupo, tenta
interpretar e seguir algo que está classificado como um “conselho
evangélico”. Nos anos oitenta do século passado, a opção
preferencial pelos pobres – contra a pobreza imposta – era tida como
uma das expressões mais evidentes do seguimento de Cristo. Produziu
uma abundante literatura pastoral, teológica e espiritual, sobretudo
no âmbito da Teologia da Libertação na América Latina. A figura
fundadora desta corrente foi o peruano, Gustavo Gutierrez, hoje
frade dominicano. Em língua portuguesa, destacou-se o brasileiro,
Leonardo Boff, que nunca renegou a sua condição espiritual de
franciscano.
Com a queda do Muro de Berlim, caíram as preocupações com os pobres.
Os ricos ficaram mais à vontade. A economia capitalista tinha saído
vitoriosa da Guerra Fria e sem alternativa. Até o partido comunista
chinês lhe achou alguma graça. Quando se pensava que tínhamos
entrado no reino global da abundância – o imenso mundo dos pobres
não conta – surgiu a “grande crise”. O bezerro de ouro tinha patas
de barro.
A globalização desregulada entrou em crise aberta nos próprios EUA
com as subprime e os
escândalos financeiros que atingiram as grandes empresas e bancos. O
desemprego em flecha, a perda de casas – proprietários que ficaram
sem poder pagar as dívidas aos bancos –, a falência de pequenas e
médias empresas, os escândalos financeiros, as roubalheiras dos
possuidores de grandes capitais e de negócios ilícitos milionários
feitos nos “paraísos fiscais”, os vencimentos astronómicos e os
prémios loucos recebidos por administradores e gestores,
desacreditou o sistema que permite e incentiva este caminho do
absurdo. Não é com 150 anos de cadeia para Bernard Leon Madoff –
lançou muita gente na miséria – que se faz justiça aos pobres.
Diz-se que para vencer esta crise globalizada é preciso mudar de
paradigma. Se não é possível prescindir da “economia de mercado”,
ela deve ser sujeita a regras éticas e político-jurídicas próprias
de Estados de Direito e de democracias pluralistas, como escreveu
Mário Soares no seu recente e magnífico “Elogio da Política”.
2.
Regressou o uso da expressão “pobreza envergonhada” – nome de uma
peça de teatro de Mendes Leal Júnior (1857) – para referir pessoas
que, no passado, tiveram um estilo de vida elevado e que o perderam
devido ao desemprego ou a outras causas. A Caritas Portuguesa
anunciou que lhes irá atribuir vales de refeição com valor de cinco,
dez ou quinze euros, não para substituir familiares, amigos ou
vizinhos, mas para os estimular. Ainda bem!
O inconveniente de tal expressão foi-me sublinhado de forma cruel:
“os que sempre foram pobres, como já estão habituados, não lhes faz
grande diferença, são pobres sem vergonha”. Um rendimento mínimo
garantido para os que “não têm unhas nem viola” é interpretado como
um subsídio à malandrice, porque, para esses, a pobreza deve
continuar como um destino.
3.
A liturgia deste Domingo sugere-nos outro horizonte para vencer,
pela sabedoria, formas de vida que globalizam a estupidez. Uma
mudança radical de paradigma. Vamos aos textos. Na primeira leitura,
tirada do livro da Sabedoria
(7, 7-11),
diz-se, de forma clara, que ceptros e tronos, pedras preciosas,
ouro e prata, saúde e beleza são nada em comparação com a arte de
saber hierarquizar aquilo que é fundamental, o que é secundário e
aquilo que arruína a existência.
No Evangelho (Marcos
10, 17-30), vai-se mais longe. Conta que um homem, cumpridor dos
mandamentos da Lei desde a juventude, queria entrar na vida que não
acaba. Jesus sentiu simpatia por ele, mas lançou-lhe um repto: “vai
vender o que tens, dá o dinheiro aos pobres e terás um tesouro no
céu. Depois, vem e segue-me”. Resultado: “contristado com essas
palavras, saiu pesaroso, pois era possuidor de muitas propriedades”.
Jesus aproveitou para insistir com os discípulos: “é mais fácil um
camelo (corda grossa de segurar os barcos) entrar pelo fundo de uma
agulha do que um rico entrar no Reino de Deus”. Os discípulos
ficaram intrigados: “quem poderá, então, salvar-se?” Segundo a
teologia oficial, teologia do sucesso, a riqueza era uma bênção
divina e a pobreza, uma maldição, fruto do pecado do próprio ou dos
antepassados.
Jesus concede que só o milagre da conversão, graça divina, é capaz
de transformar o desejo de ser rico e dominar na vontade de ser
irmão, de ser solidário. A Igreja só é cristã se for o sacramento, o
sinal e o instrumento da globalização da solidariedade, a grande
sabedoria contra a grande estupidez. |