Bento Domingues, o.p.

A GRANDE CRISE DE FÉ

 

 

 

1. Simplificando muito, o capitalismo, na sua expressão pura e dura, era a única salvação, sobretudo depois da queda do Muro de Berlim. Agora, já não são, apenas, os anti-capitalistas do costume a verem nele o caminho da perdição. Quem esperava ter o paraíso garantido para sempre, sentiu-se atirado para as trevas exteriores, onde só há choro e ranger de dentes, a morte de toda a esperança.

Lisboa, Público, 05.01.2008

Para quem acredita que fora do capitalismo não há salvação, a tarefa mais importante consiste em restituir a fé e a esperança nesse sistema para salvar a economia de mercado. A fórmula pronta a servir, diante do fracasso da sua auto-regulação, é a ética aplicada. Como a ética não é um produto natural – para não deixar tudo à arbitrariedade subjectiva – são precisas leis que regulem a vida numa sociedade democrática. Como as leis precisam de ser aplicadas, é necessária a supervisão para saber se estão a ser bem aplicadas ou não. Como numa sociedade laica não se confia a Deus a supervisão, é preciso fé nos seres humanos e no funcionamento das suas instituições. Como estes e estas são falíveis, é preciso o recurso à polícia, aos tribunais e às cadeias. Como a justiça não tem fórmulas automáticas de funcionamento, também é preciso fé na justiça, fé no Estado. Diz-se que, quando nada disto funcionar, ainda resta o desespero e a violência.

2. Depois de oito anos a acreditar nas trapaças de George Bush e da sua pandilha, assim como nos negócios vergonhosos da Wall Street, procura-se fazer de Barack Obama o salvador da superpotência para que ela seja a salvação do mundo. É normal que cada grupo procure atrair o presidente para o seu campo. Foram, sem dúvida, os menos poderosos que o elegeram. Serão, no entanto, os mais poderosos que, em nome das virtualidades da economia de mercado e do seu dinamismo, desviarão a atenção de Obama dos mais pobres das Américas, da África e da Palestina. Israel já fez o suficiente para mostrar que, mesmo com o fariseu Madoff na cadeia, os EUA devem continuar com fé em Israel, mesmo depois de todos os crimes contra a humanidade.

Não duvido que todas as tentativas serão destinadas a arranjar oxigénio para o capitalismo, mesmo através das indesejadas intervenções do Estado. É opinião corrente que o próximo ano vai ser mau para os que mais precisam e que ainda não será o último. Depois, julga-se, pela lei dos ciclos económicos, que a prosperidade regressará.

3. É normal que, agora, se volte a discutir a ética protestante e o espírito do capitalismo, caracterizados por Max Weber, ou seja, o conjunto de ideias e de práticas que favorecem, de forma ética, a procura racional do lucro económico. Outros regressarão à Idade Média, a S. Francisco de Assis, que abandonou os negócios do pai para “seguir nu o Cristo nu”, mas que originou os paradoxos franciscanos que vão da pobreza voluntária ao contributo para a sociedade de mercado (1). No campo católico, a Doutrina Social da Igreja será invocada, não como uma alternativa ao capitalismo liberal e ao colectivismo marxista, mas como uma instância moral que saiba situar o ser humano na sua vocação terrena e transcendente, reconhecendo o destino universal dos bens (2).

Neste tempo de Natal e no meio de todas estas crises de fé em tudo aquilo que se julgava o caminho e os instrumentos do bem-estar presente e futuro, não se esqueça Jesus de Nazaré, alguém que nunca viveu para ser rico. Ganhava a vida pelas suas próprias mãos, não era um austero como João Baptista, gostava da vida, mas detestava, radicalmente, a ganância, o amor ao dinheiro, à riqueza e não suportava ver uns a banquetear-se no luxo e outros atirados para a miséria: “Guardai-vos cuidadosamente de qualquer ganância, pois, mesmo na abundância, a vida do homem não é assegurada pelos seus bens”. “Que adianta ganhar o mundo inteiro e perder-se a si próprio?” E avisava as pessoas de muita religião: “Não podeis servir a Deus e ao dinheiro”, porque “onde está o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. A última leva de historiadores mostra que Jesus está rodeado pelo mundo farisaico. Conhecia-o muito bem e os fariseus também o conheciam, mas consideravam Jesus um ingénuo na sua atitude perante a ganância. É, pelo menos, o que S. Lucas observa: “Os fariseus, amigos do dinheiro, ouviam tudo isso e zombavam dele” (3).

Celebramos, hoje, a Epifania – impropriamente dita, festa dos “Reis Magos” –, isto é, o encontro simbólico do mundo estranho ao judaísmo com Jesus Cristo. É interessante notar que Jesus não se ajoelha perante os símbolos da riqueza (ouro), do sagrado (incenso) e da imortalidade (mirra) que lhe apresentam. É a grande mensagem cristã: não vender a alma a nenhum bem deste mundo profano ou religioso.

O melhor que nos poderia acontecer em 2009 seria a perda da fé naquilo que nos perde e nunca nos poderá salvar.
 

(1) Giacomo Todeschini, Ricchezza francescana. Dalla povertà volontaria alla società di mercato, Bologna, Il Mulino, 2004.

(2) João Paulo II, A solicitude Social da Igreja, nº 41 (1987).

(3) (Mt 6, 24; Lc 16, 13; Lc 12, 33-34)
 

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