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Bento
Domingues, o.p.
Baptismo de
Jesus: emancipação de um novo caminho
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Público, Lisboa, 11.01.2009 |
1. A história da investigação moderna sobre Jesus – isto é, a
que se pratica desde o século XVIII – passou por várias fases
com efeitos notáveis no conhecimento dos textos e do mundo em
que Jesus viveu. No entanto, ao focalizar um aspecto, teve de
deixar outros na sombra. Multiplicaram-se, assim, as concepções
de Jesus Cristo: o Cristo das Luzes, o Jesus liberal, o jacobino,
o romântico, o revolucionário, o pietista. Correm todas o risco
de não respeitarem a complexidade da sua figura real. A partir
dos anos 70 do século XX, impôs-se a chamada Terceira Vaga de
investigações. Se as primeiras tentavam libertar a figura de
Jesus de mitos e lendas, a terceira valoriza sobretudo o
contexto histórico da sua intervenção. De todas as importantes
obras desta nova etapa, foi-se destacando a investigação
monumental e meticulosa do americano John P. Meier, traduzida em
várias línguas. Por “Jesus histórico” ele entende o Jesus que
pode ser resgatado, retomado e reconstruído, utilizando os
instrumentos científicos da moderna pesquisa histórica.
Considerando o estado fragmentário das fontes e a natureza,
muitas vezes, indirecta dos argumentos que tem de usar, este
“Jesus histórico” será sempre uma construção científica, uma
abstracção teórica que não coincide, nem pode coincidir, com a
realidade plena do Jesus de Nazaré, aquele que, de facto, viveu
e trabalhou na Palestina no primeiro século da nossa era. O que
procura resolver são enigmas históricos e não o enigma
fundamental que Jesus representa para a nossa história (1).
José Montserrat Torrents, conhecido pela sua colaboração nas
edições espanholas da literatura gnóstica, incomodado pelas
dimensões e qualidade do empreendimento desse autor, num breve
escrito, pensa que o desqualifica, chamando-lhe “o grande mestre
da apologética católica contemporânea”. Dispensa as “notas de
rodapé de erudição e prescinde dos “entediantes volumes da
frente apologética mais recente”. Este processo dá muito menos
trabalho do que a investigação rigorosa. Em Portugal, no tocante
à religião, somos mais apressados em divulgar divulgação do que
em oferecer os frutos das pesquisas mais exigentes. A tese deste
autor é antiga e rasa: “Jesus fazia parte de um contingente
armado que tentou uma revolta em Jerusalém e que foi desbaratado
pelas tropas romanas” (2).
2. Por mais que se diga que S. Paulo foi o verdadeiro fundador
do cristianismo – embora fosse indispensável precisar o que se
entende por tal designação – ainda não consegui convencer-me de
que assim seja. Alinho mais com aqueles que sustentam que o
verdadeiro fundador do cristianismo é Jesus de Nazaré
interpretado como Cristo. No entanto, para mim, o maior enigma
continua a ser o seguinte: estando todos de acordo que Jesus não
escreveu nada, não deixou nenhuma marca arqueológica, porque
razão não foi escolhido nenhum outro nome, nenhuma outra
personalidade, como por exemplo, Maria Madalena, Pedro, Tiago ou
João, para lhe atribuírem aquilo que está escrito, de forma tão
bela, profunda, abundante e diversa, acerca de Jesus de Nazaré?
Podem ser encontradas muitas incertezas, muitos pontos obscuros,
muitas contradições nos textos do Novo Testamento e nos chamados
escritos apócrifos, mas o centro de todas as atribuições – e sem
o qual tudo se desvanece – é Jesus e mais ninguém. Que vulcão,
que acontecimento foi ele para provocar tantas comunidades tão
diversas e uma literatura tão cheia de contrastes?
3. Hoje, a Igreja católica celebra a festa do Baptismo de Jesus.
Esta designação está exposta a todos os equívocos. Pode levar a
pensar no baptismo que recebeu de João Baptista – no âmbito de
um movimento judaico – ou na celebração de um baptismo numa
Igreja cristã. Ora, nem um nem outro. O que se celebra, hoje, é
a ruptura de Jesus com o movimento de João Baptista e o começo
do seu movimento espiritual a partir de uma nova experiência de
Deus. Esta experiência mística – estava em oração – ditou-lhe um
novo caminho a percorrer, que detectamos no seu percurso
posterior, através das narrativas do Novo Testamento: Deus
surge, na sua pessoa, como uma declaração de amor por todos os
seres humanos, de todos os povos, culturas e religiões.
Resumindo, há dois mil anos, a partir de situações muito
concretas, num canto do império romano, no seio do judaísmo, na
“Galileia das Nações”, Jesus de Nazaré questionou e abalou as
falsas certezas acerca daquilo que revela e esconde, salva ou
perde o que há de mais sagrado, profundo e essencial no ser
humano, seja onde for.
Se a crise financeira e económica de consequências globais não
for aproveitada para questionar e alterar a orientação absurda
da nossa civilização, se não fizer surgir um novo olhar sobre o
mundo e o ser humano, se não levar a um novo caminho, só resta
continuar de alienação em alienação, na rota da auto-destruição.
Jesus é, nas suas palavras e intervenções, uma alteração de
todas as representações de Deus e das práticas religiosas e,
simultaneamente, a conversão exigida para aceder ao que há de
mais essencial na vida humana. |
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(1) Um Judeu Marginal. Repensando o Jesus
Histórico, (3 Volumes. O 4º está prometido para o próximo
Abril), Rio de Janeiro, Imago,
(2) Jesus, o Galileu Armado , Lisboa, Esfera do Caos, 2008 |
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