Frei Bento Domingues, o.p.

Visitar lugares santos ou comunidades?

 

 

1. Nas circunstâncias actuais, a viagem do Papa à chamada Terra Santa e as propostas do turismo religioso que a vão acompanhar parece que ainda não têm um clima totalmente clarificado. Cristãos palestinos escreveram ao Papa para a cancelar. Seja como for, Bento XVI vai pisar um terreno armadilhado em diversas direcções. Para fugir a umas, arrisca-se a cair noutras.

Público, Lisboa, 29.02. 09

Vai precisar de exercer, como nunca, o “ministério da reconciliação” para servir a paz entre povos, culturas e religiões e “fazer cair os muros da separação”. Não pode, como muitas vezes acontece, para se aproximar de uns, afastar-se de outros. A particularidade cristã que o impele só tem sentido quando surge como ecuménica, ponte entre tudo e todos, católica, no sentido exacto de abertura universal, insistindo nos caminhos concretos do direito, da justiça e do perdão que urge percorrer. A chamada Terra Santa, referência das três religiões ditas monoteístas, continua a ser um escândalo. É um dos lugares do sofrimento e da impotência de Deus perante a loucura humana.

Para que a Quaresma não seja apenas um rito anual “por fora da alma” – como diria F. Pessoa –, importa transformá-la numa infinita viagem interior, cujo destino é o nosso renascer permanente.

2. Com isto não quero desvalorizar as peregrinações à Terra Santa. Têm uma tradição e significação históricas, no imaginário cristão, que seria uma violência inconcebível tentar impedi-las. Os peregrinos vão com a ideia de um contacto privilegiado com os lugares em que Jesus viveu, actuou, foi morto e com os lugares das manifestações do Ressuscitado.

A primeira crónica da presença de peregrinos do ocidente peninsular nos Lugares Santos da Palestina é de uma notável cristã de Braga, Egéria que, em 16 de Dezembro de 383, estava no Monte Sinai. Como diz o historiador José Marques (1) – que seguimos – esta notícia, bastante anterior ao conhecimento do primeiro bispo da diocese de Braga, Paterno (397-400), é expressão segura da implantação e vitalidade do cristianismo nestas regiões do ocidente peninsular, marcado também pelo desejo de conhecer os lugares onde decorrera a vida de Jesus e outros intimamente ligados à história do Israel antigo.

O facto da narrativa do seu Itinerarium estar truncada na parte inicial, priva-nos de informações relativas à biografia desta monja peregrina, a começar pela da sua naturalidade. Apesar de haver quem a tenha considerado oriunda da Aquitânia, as opiniões convergem no sentido de que era de Braga ou, pelo menos, do Conventus Bracaraugustanus. Desconhece-se, também, o itinerário seguido e as vicissitudes do caminho. Mas, como observa J. Marques, as descrições que Egéria deixou do Monte Sinai, das manifestações de vida religiosa aí existentes, a evocação de localidades que foram cenários de conhecidas passagens bíblicas, a indicação das etapas da caminhada para Jerusalém, o registo dos itinerários das deslocações feitas, a partir de Jerusalém, à Arábia, à Síria, à Fenícia, ao Egipto, à Mesopotâmia, até Edessa – onde se encontrava o túmulo de S. Tomé – e tantas outras informações fornecidas neste “diário”, relativo a um período tão remoto, conferem-lhe um valor inestimável, no quadro das relações entre o mundo cristão do Ocidente e do Oriente.

Às descrições das localidades visitadas, temos de acrescentar também a frequente menção das pessoas que a acompanhavam e o registo do modo como se processavam as visitas, incluindo as leituras bíblicas, evocativas dos factos ocorridos em cada um desses lugares.

Tudo isto torna este “diário” egeriano um documento precioso para o conhecimento da vida cristã nestas paragens do Oriente e das peregrinações que também lá, internamente, se faziam aos Lugares Santos ou simplesmente marcados por acontecimentos bíblicos. A título de exemplo, bastará recordar que, por ocasião da visita ao túmulo de Job, diz ela: «via muitos santos monges que dali vinham a Jerusalém para visitar os lugares santos, com o propósito de ali rezarem».

Este vasto conjunto de descrições e referências a lugares santos e de interesse bíblico e às manifestações de cristianismo organizado, patente em numerosas comunidades monásticas e centros eremíticos, conferem-lhe, só por si, um interesse extraordinário como testemunho e fonte histórica. No entanto, o seu valor ficou extraordinariamente aumentado com as descrições contidas na segunda parte da obra, essencialmente acerca da liturgia praticada em Jerusalém, nos domingos, nos dias feriais, nas festas e nos diversos momentos litúrgicos especiais, como a Semana Santa, semana e oitava da Páscoa, Pentecostes, catequese e liturgia baptismal, dedicação de igrejas, etc.

No começo desta Quaresma, não posso deixar de recomendar a preciosa edição bilingue da espantosa viagem desta monja bracarense. Não estava seduzida, apenas, pelos lugares e as suas referências bíblicas, mas sobretudo pela vida das comunidades e dos seus costumes (2).

(1) Peregrinos e peregrinações medievais do ocidente peninsular nos caminhos da Terra Santa, in Estudos em Homenagem a João Francisco Marques, vol. II, Faculdade de Letras do Porto, 2001, pp.101-122.

(2) Egéria. Viagem do Ocidente a Terra Santa no século IV, Edição de Alexandra B. Mariano e Aires A. Nascimento , Lisboa, Colibri, 1998.

 
Página principal - Mapa - ISTA - Bento Domingues - Naturalismo - Jardins - Teatro - Letras - Viagens
.