Vai precisar de exercer, como
nunca, o “ministério da reconciliação” para servir a paz entre
povos, culturas e religiões e “fazer cair os muros da
separação”. Não pode, como muitas vezes acontece, para se
aproximar de uns, afastar-se de outros. A particularidade cristã
que o impele só tem sentido quando surge como ecuménica, ponte
entre tudo e todos, católica, no sentido exacto de abertura
universal, insistindo nos caminhos concretos do direito, da
justiça e do perdão que urge percorrer. A chamada Terra Santa,
referência das três religiões ditas monoteístas, continua a ser
um escândalo. É um dos lugares do sofrimento e da impotência de
Deus perante a loucura humana.
Para que a Quaresma não seja apenas um rito anual “por fora da
alma” – como diria F. Pessoa –, importa transformá-la numa
infinita viagem interior, cujo destino é o nosso renascer
permanente.
2. Com isto não quero desvalorizar as peregrinações à Terra
Santa. Têm uma tradição e significação históricas, no imaginário
cristão, que seria uma violência inconcebível tentar impedi-las.
Os peregrinos vão com a ideia de um contacto privilegiado com os
lugares em que Jesus viveu, actuou, foi morto e com os lugares
das manifestações do Ressuscitado.
A primeira crónica da presença de peregrinos do ocidente
peninsular nos Lugares Santos da Palestina é de uma notável
cristã de Braga, Egéria que, em 16 de Dezembro de 383, estava no
Monte Sinai. Como diz o historiador José Marques (1) – que
seguimos – esta notícia, bastante anterior ao conhecimento do
primeiro bispo da diocese de Braga, Paterno (397-400), é
expressão segura da implantação e vitalidade do cristianismo
nestas regiões do ocidente peninsular, marcado também pelo
desejo de conhecer os lugares onde decorrera a vida de Jesus e
outros intimamente ligados à história do Israel antigo.
O facto da narrativa do seu Itinerarium estar truncada na parte
inicial, priva-nos de informações relativas à biografia desta
monja peregrina, a começar pela da sua naturalidade. Apesar de
haver quem a tenha considerado oriunda da Aquitânia, as opiniões
convergem no sentido de que era de Braga ou, pelo menos, do
Conventus Bracaraugustanus. Desconhece-se, também, o itinerário
seguido e as vicissitudes do caminho. Mas, como observa J.
Marques, as descrições que Egéria deixou do Monte Sinai, das
manifestações de vida religiosa aí existentes, a evocação de
localidades que foram cenários de conhecidas passagens bíblicas,
a indicação das etapas da caminhada para Jerusalém, o registo
dos itinerários das deslocações feitas, a partir de Jerusalém, à
Arábia, à Síria, à Fenícia, ao Egipto, à Mesopotâmia, até Edessa
– onde se encontrava o túmulo de S. Tomé – e tantas outras
informações fornecidas neste “diário”, relativo a um período tão
remoto, conferem-lhe um valor inestimável, no quadro das
relações entre o mundo cristão do Ocidente e do Oriente.
Às descrições das localidades visitadas, temos de acrescentar
também a frequente menção das pessoas que a acompanhavam e o
registo do modo como se processavam as visitas, incluindo as
leituras bíblicas, evocativas dos factos ocorridos em cada um
desses lugares.
Tudo isto torna este “diário” egeriano um documento precioso
para o conhecimento da vida cristã nestas paragens do Oriente e
das peregrinações que também lá, internamente, se faziam aos
Lugares Santos ou simplesmente marcados por acontecimentos
bíblicos. A título de exemplo, bastará recordar que, por ocasião
da visita ao túmulo de Job, diz ela: «via muitos santos monges
que dali vinham a Jerusalém para visitar os lugares santos, com
o propósito de ali rezarem».
Este vasto conjunto de descrições e referências a lugares santos
e de interesse bíblico e às manifestações de cristianismo
organizado, patente em numerosas comunidades monásticas e
centros eremíticos, conferem-lhe, só por si, um interesse
extraordinário como testemunho e fonte histórica. No entanto, o
seu valor ficou extraordinariamente aumentado com as descrições
contidas na segunda parte da obra, essencialmente acerca da
liturgia praticada em Jerusalém, nos domingos, nos dias feriais,
nas festas e nos diversos momentos litúrgicos especiais, como a
Semana Santa, semana e oitava da Páscoa, Pentecostes, catequese
e liturgia baptismal, dedicação de igrejas, etc.
No começo desta Quaresma, não posso deixar de recomendar a
preciosa edição bilingue da espantosa viagem desta monja
bracarense. Não estava seduzida, apenas, pelos lugares e as suas
referências bíblicas, mas sobretudo pela vida das comunidades e
dos seus costumes (2). |