1. A
celebração do Natal, como festa da família, apresentou-se,
durante muito tempo, como um dos maiores êxitos da inculturação
do cristianismo. Mesmo com a chamada “crise da família” – ou dos
seus modelos –, ainda não perdeu essa nostalgia. Cresceu, por
outro lado, a sensibilidade para a condição dolorosa dos “sem
abrigo”. Não se pode ignorar, todavia, que a situação daqueles
que são apanhados entre fogos cruzados de diversas formações
familiares pode acordar, em muitos, um irremediável sentimento
de perda e solidão.
Com a vitória
publicitária do Pai Natal sobre o Presépio, não falta quem
procure desvalorizar, por razões opostas, a importância desta
data, destacando que o 25 de Dezembro não é o dia do nascimento
de Jesus Cristo. De facto não é, mas também não se trata de uma
escolha arbitrária. É a substituição cultural e religiosa da
festa pagã do nascimento anual do sol – segundo o calendário
grego e romano – pela celebração do nascimento de Cristo, o
verdadeiro sol da justiça e da graça, estrela da manhã de um
mundo novo.
2. Nesta
época de Natal, a revista
Philosophie Magazine (Hors-série, Nov.-Dez. 2009)
publica um número dedicado à “Bíblia dos filósofos”, limitada ao
Novo Testamento. Os nomes são muitos e sonantes, destacando-se
Kant, Leibniz, Nietzsche, Freud, Engels, Rosa Luxemburg, Lacan,
Sartre, Wittgenstein, Todorov, Nancy, Luc Ferry, A.
Comte-Sponville, Badiou, René Girard, Agamben, Žižek, Hannah
Arendt, etc. Embora seja um número especial, o espaço de cada um
tinha de ser muito limitado. Pode dar a ideia de tagarelice
filosófica que Wittgenstein detestava. Quem desejar uma
informação mais especializada sobre o que foi a presença, negada
ou afirmada, de Deus na filosofia do século XX poderá recorrer a
outras fontes, tendo sempre em conta a diferença entre o Deus
dos filósofos e o Deus de Jesus Cristo destacada por Blaise
Pascal (1).
De qualquer
modo, a revista chama a atenção para uma problemática que
importa acolher e discutir no interior da fé cristã. É verdade
que, nesta época festiva, prefere-se o sentimento ao
conhecimento, mas com o risco da continuada vitória da
ignorância satisfeita. Paul Ricoeur já tinha reagido a esta
situação: “Acho completamente inacreditável que, no ensino
público, a pretexto da laicidade de abstenção própria ao Estado,
nunca sejam verdadeiramente apresentadas, em profundidade, a
significação das grandes figuras do judaísmo e do cristianismo.
Chega-se ao seguinte paradoxo: as crianças conhecem muito melhor
o panteão grego, romano ou egípcio do que os profetas de Israel
ou as parábolas de Jesus; sabem tudo acerca dos amores de Zeus,
conhecem as aventuras de Ulisses, mas nunca ouviram falar da
Epístola aos Romanos nem dos Salmos. De facto, estes textos
fundaram a nossa cultura muito mais do que a mitologia grega”.
3. O Presépio
– Deus nascendo humano num curral – não é uma narrativa
anti-filosófica nem anti-teológica. Dará sempre muito que
pensar, não só a judeus e a gregos, como em todos os lugares e
culturas, onde se tornar conhecido. Os Evangelhos Apócrifos não
esqueceram a ruralidade de um menino aquecido pelo bafo do boi e
do burro e os Evangelhos Canónicos encheram-no de pastores, de
magos e de música. Ali, nascia um menino judeu que não cabia no
judaísmo nacionalista. O seu reino era o do advento do humano
universal. Não foi por acaso que colocaram Jesus a nascer na
periferia porque toda a sua vida adulta foi a de colocar, no
centro da sociedade, todos os que dela eram expulsos por razões
de ordem económica, cultural, moral e religiosa.
O Evangelho de
Marcos começou com Jesus adulto, experimentado e interveniente.
Era um homem sem infância. Mas uma pessoa sem infância não pode
ser humana. Por isso, embora num género literário muito especial
– mais real do que o puramente histórico –, os Evangelhos de
Mateus e Lucas tiveram a boa ideia de destacar o nascimento e o
crescimento dessa criança de Nazaré. Só os animais é que nascem
quase prontos para a vida adulta. O ser humano, depois de nove
meses no seio materno, precisa, durante anos, da mãe e do pai
para aí chegar. A história da relação familiar pertence à
essência do que é tornar-se humano. Não se poderia falar de Deus
humanado – como rezavam antigas orações portuguesas – sem passar
pelo estatuto de criança.
Como o Novo
Testamento é feito de cartas e narrativas, muitos estranham que,
depois, apareçam doutrinas, definições e teologias marcadas pela
cultura grega. Julgam como traição a passagem da inteligência da
fé cristã de Jerusalém para Atenas pelos caminhos do Império
Romano e da sua técnica.
A simplicidade
do Presépio não é simplória como a do Pai Natal. O cristianismo
é polifónico. Nunca poderá viver, de forma saudável, numa única
expressão. Sem a linguagem quente da imaginação simbólica
através da religião e das suas criações artísticas, sem as
interrogações das diversas correntes filosóficas e das
investigações científicas, sem a depuração mística, o
cristianismo atraiçoa a condição humana que deve assumir na sua
complexidade e diversidade. Santo Natal! |