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Frei Bento
Domingues, o.p.
Divorciados
recasados
1.
Um dos chefes de redacção do jornal católico francês, La Croix,
Michel Kubler, no Editorial de 13 de Março (2009), ao comentar a
carta de Bento XVI aos bispos, carta de um Papa profundamente
magoado, pergunta se a “crise integrista” não será o sintoma de
uma crise mais ampla, na Igreja e da Igreja. Ao levantar esta
hipótese, não pretende tornar esse quadro ainda mais negro.
Procura, apenas, saber onde estão as causas deste drama. Não
resultarão elas, em grande parte, do crescente mal-estar de um
sistema católico, cuja lógica e discurso são cada vez menos
compreensíveis pela cultura ocidental?
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Não admira que os membros da
Igreja, tributários desse sistema e dessa cultura, se encontrem
cada vez mais divididos entre ambos. Deparamos, todos os dias,
com testemunhos desse disfuncionamento e tudo se complica quando
o sistema é usado com dois pesos e duas medidas.
Na eleição deste Papa, muitos católicos pensaram que Bento XVI
não poderia ser a continuação do cardeal Ratzinger. Teria de
compreender que as suas simpatias pessoais pelas correntes mais
conservadoras e as suas alergias pelas teologias modernas não
poderiam ser o critério de governo do animador do grande e
plural Movimento que é a Igreja Católica. Agora, essa
predisposição parece estar em crise, sobretudo no seu país: a
Conferência Episcopal Alemã queixa-se de uma grande falta de
colegialidade; o semanário Der Spiegel foi ao ponto de escrever
que “um papa alemão ridiculariza a Igreja católica”; não
faltaram teólogos a declarar que, “se o Papa quer fazer alguma
coisa boa pela Igreja, que se demita”. Tal gesto não teria,
aliás, nada de humilhante, pois, se os bispos entregam os seus
cargos aos 75 anos, se os cardeais perdem os seus direitos aos
80, um Papa, cuja função é muito mais pesada, não deveria
esperar por uma idade muito avançada para renunciar ao cargo.
Devo observar, no entanto, que esta consideração tão sensata
ter-nos-ia privado do velho mais jovem e criativo da Igreja no
século XX: o Papa João XXIII.
2. As expressões de abertura, compreensão, generosidade e
acolhimento de Bento XVI, em relação à sectária “Fraternidade de
São Pio X”, não impedem de marcar os seus defeitos nem de
destacar as qualidades que o comovem, sublinhando que não pode
deixar ao abandono, por razões mesquinhas, 491 sacerdotes, 215
seminaristas, 6 seminários, 88 escolas, 2 institutos
universitários, 117 irmãos, 164 irmãs e milhares de fiéis.
Não seria esta uma boa ocasião para iniciar passos de
aproximação e abertura em relação a movimentos, comunidades de
base, bispos, teólogos, padres e leigos, que as atitudes e
medidas de Ratzinger, o Prefeito da Congregação para a Doutrina
da Fé, contribuíram para afastar das instituições da grande
Igreja Católica? Não são da Igreja apenas os que olham para o
passado, mas também os que olham para o presente, para os lados
e para o futuro. O chamado sistema católico parece ter perdido o
sentido da catolicidade, da inclusão das vozes mais críticas e
criativas que vivem um diálogo activo com o que há de melhor no
mundo moderno e na diversidade das culturas.
3. É neste contexto que Bento XVI deveria ser convidado a rever
a triste carta Aos bispos da Igreja Católica a respeito da
recepção da comunhão eucarística por fiéis divorciados novamente
casados, que o cardeal Ratzinger assinou, em 1994.
Não se pode esquecer que o ser humano vive uma realidade física,
psíquica e relacional numa história familiar muito complexa. Os
sacramentos são para os seres humanos, não os seres humanos para
os sacramentos. São celebrados, de forma ritual, para que, no
quotidiano e nos momentos mais típicos da sua existência, possam
viver a fé com esperança e responsabilidade.
A graça do matrimónio não substitui a natureza. Um fracasso
matrimonial não é sempre o resultado de um pecado ou de uma
infidelidade à graça nem incapacita, automaticamente, as pessoas
divorciadas para um novo casamento. São conhecidas muitas
experiências que testemunham que a nova relação resultou de um
verdadeiro encontro com o amor humano e divino. As Igrejas do
Oriente, com as quais a Igreja Católica Romana esteve em
comunhão até ao século XI, souberam compreender essa situação
humana e eclesial. Foi, aliás, por isso que, no Concílio de
Trento, continuando a afirmar a indissolubilidade do matrimónio
– e não se pode renunciar a esse horizonte – não a definiu como
um dogma de fé, como alguns desejavam.
Não seria importante que, depois de uma ampla consulta, se
reunisse um Concílio Ecuménico das Famílias – representantes das
várias tendências – para perspectivar uma pastoral matrimonial
que substitua o moralismo por uma ética e uma mística
verdadeiramente cristãs? “De uma vez por todas, foi-te dado
apenas um breve mandamento: ama e o que quiseres faz. Se te
calas, cala-te movido pelo amor; se falas alto, fala por amor;
se corriges, corrige por amor; se perdoas, perdoa por amor. Tem
no fundo do coração a raiz do amor. Dessa raiz só pode sair o
bem”. Isto dizia Sto Agostinho, no Tempo Pascal do ano 407.
Não é, certamente, dessa raiz que nasce o farisaísmo de certas
comunidades paroquiais que apontam o dedo à situação matrimonial
de outros irmãos. |