Para evitar equívocos, há mesmo
quem fale de cristianismo no plural. Seja como for, Fátima – uma
das marcas do nosso catolicismo – é acusada de religião
dolorista. O que, para um cristão, pode haver de mais
inaceitável, nessas e noutras expressões, é a convicção de que
exista um Deus ofendido que nunca está satisfeito com nenhuma
reparação. Seria um sádico que se alimentaria da prostração
humana. Certos raciocínios teológicos fizeram do próprio
sofrimento de Cristo a resposta a um Deus infinitamente ofendido
que só podia satisfazer-se com uma reparação infinita.
Pode ter versões mais caseiras: O neto acompanha a avó à missa.
A homilia prolonga-se. A avó sente a inquietação do neto e
pergunta-lhe: Está muito chateado? Humm, mais ou menos! Ofereça
essa chatice a Nosso Senhor! O neto, um pouco admirado,
resmunga: Porquê, ele gosta?
2. Ser sacrificado e sacrificar-se é um dado da experiência
humana que pode ter sentidos aceitáveis e perversos, fora e
dentro das religiões. De modo muito geral, o sacrifício pode ser
definido como uma oferenda, animal ou vegetal, apresentada a
Deus sobre o altar e subtraída, pela sua destruição parcial ou
inteira, a qualquer uso profano.
O Antigo Testamento está marcado por muitas narrativas de
sacrifício. O livro do Levítico fez a sua tipologia. Os profetas
e os sábios criticaram a redução dos sacrifícios a actos
puramente exteriores, contrapondo-lhes as atitudes interiores de
entrega a Deus inseparável da prática da justiça e da
misericórdia. Depois da destruição do Templo pelos romanos (70
d.C), a oferta dos sacrifícios, no judaísmo, foi substituída
pela liturgia da Palavra.
No Novo Testamento, Jesus – criticado por andar em más
companhias e não seguir as rigorosas observâncias do jejum –
lembrou, aos seus acusadores, a preferência de Deus: “Eu quero
misericórdia; não quero sacrifícios”. Jesus não procurou a morte
nem esta era a vontade de Deus. Não tinha nenhum amor ao
sacrifício, mas por amor, deu a vida toda. Ao pedir, ao Pai,
perdão para aqueles que o condenavam à morte, matou, na sua
morte, o ciclo da violência e da vingança. Testemunhou, em
lágrimas de sangue, que é possível um mundo outro.
3. A liturgia da Quaresma começou na Quarta-feira de Cinzas.
Durante muito tempo, estas assinalavam a nossa evidente e pouco
exaltante condição que nenhum mausoléu pode iludir: “Lembra-te
que és pó e em pó te hás-de tornar”. Agora, em vez desta
desolada verificação empírica, conformista, a celebração surge
com uma individualizada proposta de vida: “Converte-te e
acredita no Evangelho”. Acredita que a morte não é a última
palavra. Vive de tal maneira que Deus e os outros te queiram
para sempre.
Na primeira leitura, o profeta Joel esclarece que os jejuns, as
lágrimas e as lamentações não valem por si, mas apenas se
exprimirem a conversão radical: “rasgai o vosso coração e não o
vosso vestido”.
Num trecho do Evangelho, segundo S. Mateus, Jesus, perante um
público que só pensa em recompensas, dá uma volta completa à
religião exibicionista, destinada a mostrar quem era mais santo,
mais digno de louvor pelas esmolas, jejuns, rezas e
austeridades. A verdadeira religião é um segredo do coração,
nosso e de Deus.
4. Neste Domingo, a ideologia do sacrifício recebe um golpe
mortal. A figura da fé mais incondicional, da obediência mais
cega foi sempre a de Abraão, assumida pelo judaísmo, pelo
cristianismo e pelo islão.
Pouco interessa, aqui, saber se é uma personagem histórica,
mítica, teológica ou uma construção de várias dimensões. Foi
sempre muito inspiradora para a literatura, a música, o cinema,
a espiritualidade e a teologia. Uns deleitam-se com a prontidão
da sua fé e da sua obediência a Deus a ponto de, por Ele,
sacrificar tudo, mesmo o único filho. Confesso que nunca achei
muita graça nessa exaltação de um Deus déspota e de uma
obediência cega. Este admirável filme de suspense deve
entender-se a partir do desenlace: há deuses que exigem uma fé
cega e sacrifícios humanos. Abraão acabou por descobrir que
andava enganado. O sacrifício de Isaac marca a diferença entre o
Deus antigo e o Deus novo: é o Deus antigo que pede a Abraão
para sacrificar o seu filho; quando ele o vai fazer, o Deus novo
impede-o. O fim do infanticídio ritual é uma das marcas da nossa
civilização (R. Girard).
Tudo o que é grande e belo na vida exige sacrifícios. Que o
digam os que se dedicam ao desporto, às artes, à investigação. A
busca do prazer imediato mata o prazer diferido, aquele que vem
da perfeição que se vai realizando. O amor do sacrifício é uma
doença. Sacrificar-se por amor é expressão de boa saúde humana e
espiritual. |